sexta-feira, junho 25, 2004

Beckham is a jolly good fellow !










Still looking for the ball that went straight up into orbit !




quinta-feira, junho 24, 2004

Raros são os dias (XIV)

Luanda


Recusou o convite para passar para o banco do lado e tentou afastar o medo, com um grito, como daquela vez em que o professor de Ciências a esperou no pátio da escola e convidou para explicar em sua casa porque razão o sumo não cai das palhinhas quando seguramos uma das pontas com um dedo. Viu os olhos amarelos e o esgar trémulo de um lábio, como estava a ver agora, viu a mão do professor estender-se para o seu cabelo, como aquela mão se estendeu, sentiu o cheiro de um suor que se mostrava em gotas pequenas na fronte do professor, como sentia agora, cada vez mais próximo de si, tinha de ir a Chicago, pensou. A resposta estava lá, tentou pensar depressa numa solução, não ia entregar o carro daquela maneira estúpida, era preciso falar, explicar, talvez não devesse ter gritado, talvez não devesse ter pensado nos olhos verdes de Marcelo antes, com a face encostada a si, e desejar que fosse ele, e não aquele estranho, mesmo antes de olhar o pai, de sentir a terra vermelha da sua terra gritar de dor pelo sangue de tantos amigos, de uma lágrima inexplicável ter saltado e misturado com o suor daquele rosto agora colado ao seu cabelo e um barulho definitivo ter rebentado o timpano esquerdo, deixando que o frio se aproveitasse da sua fraqueza e tomasse o lugar que só deveria ser seu daqui por muitos anos.
Absolutamente impossível imaginar que o vermelho se alastrasse pelos ombros, como se o baton de repente puxasse pelos lábios e sugasse todo o sangue, de repente a boca ficasse muito aberta e espantada num sorriso estranho de máscara, e o sangue iluminasse os olhos já indiferentes á vida, como se o sangue fluisse mesmo do coração, e chamasse por ele. "Marcelo, se eu morrer levas-me para ao pé do meu pai, está bem?", dissera-lhe um dia quando voltavam do alto do monte que domina Luanda, e onde o cemitério é calmo como em mais nenhum lugar. Como em todos os lugares do mundo onde ninguem fala, onde há pedras e flores, e arvores longas que parecem tentar sossegar quem lá vai e olhar para o lugar prometido, mesmo ali onde se perde a esperança para sempre. O lugar dos sinos tristes e compassados que anunciam entradas definitivas num mundo, outro mundo, sem nada para as almas, sem nada para além dos bichos invisíveis, onde as árvores longas cobrem de tristeza quem ali vai à procura de um encontro consigo, a pretexto da memória de outros lugares. O lugar onde Deus não está.


quarta-feira, junho 16, 2004

Raros são os dias (XIII)

Luanda

Nessa manhã saira de casa com uma pasta, condizendo com a sua fatiota saia e casaco vermelha e cinzenta, uma pasta preta com as iniciais TM&A, apenas um café e torrada sem manteiga, iogurte bulgaro, algumas horas depois de um breve sono agitado de números e fantasmas de dossiers debaixo do braço, a agitação de uma descoberta fantástica, mais números, uma viagem a Chicago em perspectiva. Laura investigava, a auditoria que conduzia fascinava-a e punha Marcelo numa espécie de suplente, o que o desesperava e fazia imaginar traições e abandonos que ela desmentia com um sorriso estranho que ele sempre adorara e respeitara. Despediu-se á pressa, bateu a porta, enquanto ele vagueava pela casa em pijama de seda azul, com uma lapela onde se insinuavam dragões chineses e porticos vermelhos: a porta do khmer vermelho, chamara-lhe ela, a sorrir, sempre com os olhos em alerta, não fosse alguma borboleta escapar-lhe do angulo de visão e esmagar-se contra o espelho. Impossível viver mais depressa, pensava Marcelo enquanto olhava pelo portão de ferro, cheio de um desejo por ela que o atirava por vezes contra a cama e a roupa que ela deixava ao acaso espalhada pelo quarto, á procura dos sabores dela, dos cheiros dela, da imaginação dela que o pregava ás costas da cama, enquanto ela nua lhe soprava palavras e se encavalitava firmemente com as mãos na madeira, encurralando-o, impondo-lhe os ritmos, arrancando-lhe as palavras que ele detestava dizer, temendo alguma desconcentração que a desiludisse, a fizesse sair do transe.
Viu ao longe o Taunus, tirou as chaves e caminhou segura para o carro, mala ao lado, telemóvel em posição de combate, 8.00h da manhã; uma hora depois estaria a receber a 1º chamada do escritório de Lisboa. Atravessou Luanda pelo largo do Kinaxixe, olhou ainda outra vez o tanque ferrugento no centro da praça, buzinou aos miudos da rua, mexeu o cabelo, olhou o espelho, não gostou, parou. Tirou a escova da mala, não estranhou o toque ao de leve no vidro, algum miúdo a pedir, arranjou o cabelo sem ligar e de repente viu-se rodeada de faces impenetráveis a olhar de todos os lados de todos os vidros da frente do carro. Estremeceu, lembrou-se dos avisos, o carro balouçava como se de um barco se tratasse, olhou a mala distinta da TM&A, abriu o vidro e gritou: fora daqui!. Os lábios vermelhos assustaram aqueles pobres diabos, movidos pela curiosidade, saltaram como esquilos e desapareceram a rir.
Com a raiva deixou o carro ir abaixo, deu volta à chave, e nesse momento sentiu um silêncio envolve-la, como se os passos de gente se evadissem num espaço irreal para ficar só face a face com o medo.


segunda-feira, junho 14, 2004

Raros são os dias (XII)

Luanda

7.30h - Ao olhar a janela, o mesmo susto de sempre: um soldado de "kala"ao ombro, passava revista ao pátio da escola. Ainda não se habituara ao cenário, mesmo visto do 7º andar do apartamento alugado, com muito mais espaço que a sua casa de sempre, na Maianga; ainda não se habituara á ideia de sofrer a ausência de Laura. Inoportunas as ideias do dia em que vira subir a rua um carro verde, muito fumo de escape como era norma naquela cidade. Nesse dia resolvera ir a casa a meio da manhã, tomar um cafezinho, fazia aquilo poucas vezes, muito menos vezes do que as que se entretinha a contar ao seus amigos da Universidade, aos portugueses em especial. Gostava de os olhar sorridente e lembrar-lhe as dolorosas idas e vindas pela 2ª circular, vindos do Cacém, records de 3 horas de caminho, sextas feiras loucas de paixão pelo automóvel, uma ópera não chegaria. Tomar café a casa a meio da manhã?
O automóvel verde encostou ao passeio curto, degradado e sujo, sem cães, com crianças de olhar bonito com uma esperança de nada e de tudo o que pudesse ser outra vida, a sua vida. Sairam dois pequenos homenzinhos magros e antes que batessem á porta ou dissessem fosse o que fosse, Marcelo já sabia que a sua vida mudara alguns minutos atrás, antes de alguém dizer algo, ele olhava a vida de alguns minutos atrás e via-se a trocar frases banais com os alunos, a falar ao telefone, mais para trás, a jantar arroz frio com peixe frito, acompanhado de cerveja, mais para trás, na praia da Corimba, entre palmeiras, mesmo rodeado de latas de coca-cola, mas feliz, sim mesmo feliz, quando ao domingo olhava com rancor antecipado as maldades que as segundas feiras fazem a quem é feliz, mesmo ainda que a Física dos homens fosse impossível, ele não queria olhar mais para o futuro, não queria mais a sua vida. Ouviu o relato dos polícias como se tudo estivesse escrito antes, num drama de Lobo Antunes, sem paixão aparente, com palavras incertas, com vento por trás a soprar as palavras desnecessárias. Um taunus velho que oferecera a Laura ainda era objecto de cobiça pelos deserdados do petróleo, pelos errantes da guerra, para trocar por uns dólares.
"Laura, não penses em oferecer resistência, se isso acontecer dá-lhes as chaves, pensa em nós e não no carro" dissera-lhe após uma conversa recorrente em Luanda: assalto com pistola em punho num semáforo, quem resiste é morto (friamente dissera o Pita, ao que ele retorquira que quem mata sem ser friamente deve ser um tipo qualquer de romance policial, vindo directamente da página 48, onde normalmente se mata o primeiro, depois pode acontecer que a história se complique e seja preciso matar mais um ou outro. Friamente claro, como Ripley, que tinha uma maravilhosa Heloisa que o esperava numa confortável casa em Paris e seria a musa inocente que inspirava o gelo dos crimes). Mas ela era altiva, achava impossível que a sua bela cabeleira pelos ombros e (sempre) contrastante com um baton vermelhissimo, aliada a berloques comprados em Lisboa na casa Batalha, pudesse fazer com que alguma pistola se disparasse a não ser que um acaso...

Durão e Scolari: os bandeirantes


Estes homens não perceberam bem de onde vêm e para onde vão.

Os portugueses com a sua antiga veia subserviente, amiga da força bruta e ditatorial, aplaudiram nos ultimos dias a força da palavra ilustrada com murro na mesa e seguiram a onda da bandeira. O seleccionador "nacional" disse e a esperança do povo pôs bandeiras nas casas e nos carros, sublimando o facto óbvio: a portuguesa equipa joga agora pior do que quando o simpático de bigodinho à la anos sessenta pegou nela, com milionárias expectativas no bolso.

O óbvio de tão chocante cegou tudo: nenhum jogo de "preparação" acabou com menos de metade dos que o iniciaram: nem equipa nem estilo de jogo, com muitas afirmações de "sei não", "estou sabendo de tudo", "há gente tentando boicotar meu trabalho", e "no final a gente fala".

Elegendo como inimigos principais o FCP ( e eu um tipo do Benfica até se devia arrepiar com isto...), esqueceu porque razão o dito clube ganhou quase tudo o que havia para ganhar. Na equipa portuguesa nem teve coragem de eleger o "brasileiro" como indiscutível, o que até nem seria grave não fossem os tremeliques de uma equipa que claramente o bandeirante arruinou.

Força Portugal perdeu ontem e voltou a perder hoje. A Grécia e os eleitores portugueses deram lições. Mas não tenho esperança que nem Durão nem Scolari se saiam bem e dignamente de isto tudo. O euro 2004 tem assim a sua suprema ironia: mostrámos quem não queremos, ganhando e perdendo.

Valha-nos Santo António.


domingo, junho 13, 2004

Raros são os dias (XI)

Lisboa


18.00h. Saiu para a chuva de Lisboa, olhou para trás, para a porta de onde poderia ele entrar daí a minutos, para a porta que poderiam abrir juntos, se não foram tantas dúvidas naquele átrio, que parecia de repente ser um fim de ilusões, parecia de repente intransponível, pesado como se de ferro se tratasse, como se uma ponte levadiça estivesse ali, ela fosse uma princesa aprisionada e o seu cavaleiro abatido por inúmeras setas, quando se aprestava para a salvar, o seu cavaleiro imaginado tantas vezes, de repente falhasse a aparição.

quarta-feira, junho 09, 2004

Raros são os dias (X)

Lisboa


Uma depressão, se calhar depois ela tinha uma depressão, e ele tinha de voltar a vê-la, se não fosse aí seria talvez por acaso. O acaso que no desespero dos dias sem ninguem para falar o levara a mudar tudo para casa dela, depois de ver a praia, depois de ter bebido muito, depois de ter visto seres de mão dada, depois de ter desesperado das mulheres que o queriam e que ele desprezava. O menor dos males, não queria viver sozinho, queria uma casa, uma mulher, queria ter um filho!
Desceu depressa para a garagem, tinha de ir depressa para as Laranjeiras, ela esperava, era um dia decidido há muito, arrancou, desesperou com os carros que impediam uma saída rápida, entrou no trânsito da cidade como quem enfrenta a última aula do ano, com os alunos impacientes, ele impaciente mas com um brilho e uma coragem de festa de sentidos, alerta, sempre com um sorriso.



18.00h. Ligou as luzes do carro, enquanto olhava para o semáforo vermelho. Conseguia imaginá-la dentro de casa, a inventar sítios para colocar as coisas, a fazer planos para os domingos â tarde, para estarem os dois. Contar-lhe tudo, isso agora era o mais importante, contar-lhe que ficariam livres para os dias como quisessem, deixar de vez o vaivem para Luanda.

quarta-feira, junho 02, 2004

Raros são os dias (IX)

17 h. Fez mais uma vez os 4 passos de distância entre o elevador a porta, acendeu mais um cigarro, olhou as caixas de correio, o átrio com uma planta enorme e uma secretária sem cadeira, olhou o átrio que poderia ser o da sua casa, seria? e saiu para a chuva. Afonso chegaria daí a pouco mas não a encontraria no 8º andar que não chegara a ver. Talvez chegasse no seu blazer azul escuro que repetia com a gravata azul de risca vermelha e a canção de Natal com violinos que entoava quando olhava as lojas iluminadas, talvez pensasse nos lugares de Lisboa que perdiam sentido quando já se perdera a memória de os viver com alguém, cheios de nevoeiro a escapar às obrigações de um dia com horário, em todo o lado as ruas percorridas com ela, indiferentes por algum tempo, mas sempre com uma vingança contra a passagem apressada, depois um dia quando se passa por lá alguma coisa infecta a alma e amarga os sentidos do tempo perdido, por um dia, por tanta vez se ignorar o que os olhos podem ver e passam.



17.35 h
Deu uma olhadela rápida ao relatório e fechou o computador; não era possível disfarçar mais para si próprio e muito menos para os auditores, não havia mais espaço para encobrir imposto, rasgar facturas e impingir aos espanhóis lingerie de má qualidade misturada com boas peças de roupa. Tinha de dizer adeus depressa aquela rapaziada das cuecas e soutiens, antes que tivesse de fazer malas à pressa, embarcar para o Brasil, para o Yemen ou para Angola, Abandonar a Laura e o projecto "impossível"de viverem juntos.
Mas como fazê-lo? Como, se a grande oportunidade caminhava para ele, em grandes imagens de imponentes viagens ao Belize, o iate em Vilamoura, finalmente, nada de pequenos barcos a gasolina para passear e impressionar os habitantes de subúrbio de Lisboa, comprar em Cannes, comprar assinaturas no Met, na Opera de Paris, jazz em NY, sempre que lhe apetecesse. Mas a Laura.
Tinha de sair depressa, era um dia daqueles que eles sabiam ser mais um para nunca mais esquecer, aqueles dias em que os detalhes saem de repente dos olhos das pessoas que os recordam, no olhar para o carro do lado, num bar, a olhar para o espelho enquanto o outro lava os dentes e olha para nós, a olhar para quem colidiu na esquina, escancarado no passeio depois de tropeçar, um olhar. Seria um desses dias, porque, sem saber nada de nada, sem ter comprado nada a não ser um bule de chá, iam alugar um T2, com vista ou sem ela, ele não queria saber; sem saber o que dizer à Luisa como e a que horas, nem a imagem desconfortável das malas feitas para sair de casa, nem o choro, nem as fotografias do caixote, nem os menus dos restaurantes, o desespero dos clichés. Como seria ? seria assim, como num filme italiano, com ela a rasgar roupa e a atirar coisas, ou como num filme de Eastwood, com ela sentada num sofá, com lágrimas e sem olhar para ele, a mandá-lo embora com frases curtas, sem poesia, sem grandeza, o que faria no minuto seguinte? Ia ao café, metia-se no carro, ou ia passear pelo rio, ou ainda...