quinta-feira, novembro 06, 2003

Um Domingo qualquer

08.00 h Visto-me a rigor para a corrida. Olho primeiro o Tejo, para averiguar o tipo de sapatos e t-shirt aconselháveis. Escolho a T-shirt azul escura, o boné da Gant, e os sapatos Reebok caríssimos que, assegura a publicidade, amortecem o impacto nas estrutura humana (acho que não diz exactamente assim, mas eu acho que é disto que se trata: trocar uns pedaços de tempo na vida e células refrescadas por uns tendões dissimuladamente avariados)
Não ponho perfume nem faço a barba. Os meus amigos não reparam. Mas convém ir minimamente arranjado para a autoestima não sofrer abalos.

08.15 h. Sofro um arrepio só de pensar que sonhei que estava numa falésia dos Açores e uma mulher me empurrava para cair dentro de um avião da SATA cheio de gente doente. Afasto esta morbidez, talvez tenha olhado para o céu cinzento e saio a porta, sem esquecer o rebuçado.

09.30 h Acabo a corrida e deito-me em cima da relva a olhar os cães que passam com os donos ensonados. Cada vez há mais e cada vez mais se assemelham. Falam uns com os outros como as mães falam dos filhos, a primeira porta aberta com o focinho, a primeira mordidela na mulher, os primeiros latidos significativos. Há cenas de engate com cães como intermediários, o melhor amigo do homem.

10.00h Entro no ginásio já pejado de mulheres celulitadas e ansiosas por resolver hoje o que não tiveram tempo para tratar de há dez meses a esta parte. Converso despreocupadamente com o corpulento que está atrás do balcão e que tem uma cara absolutamente boçal, lembrando os pescadores algarvios a entrar numa discoteca de Albufeira. Olha guloso para as calças apertadíssimas das meninas e sorri com uma cumplicidade que me deixa vontade de lhe fazer ao cérebro o mesmo que Anthony Hopkins demonstrou não ser grande problema. Lembro agora Florença e empurro a porta do balneário.

10.30h Depois de queimar mais não sei quantas calorias e de inspirar o eucalipto do banho turco, ando por ali mais um bocado a fingir que me inspiro para o resto do dia, olho para o espelho a compor o que não é preciso, como se alguém estivesse ali fora para reparar em mim, algum fantasma desconhecido ou apenas o sol.

11.00h Subo para a piscina. Decido nadar um pouco, levo os meus oculos Arena e o fato de banho a condizer; o vento arrepia toda a gente mas a vontade de ficar bronzeado dos presentes é mais forte, as que já têm menos celulite ou menos 15 anos estão por ali a pavonear-se e os tipos mais ousados lêm a GQ de pernas para o ar, trocando olhares incertos, mas não vejo ninguém com o ar blasé que se impunha. Como nada disso me interessa, mergulho imediatamente e contemplo alguns segundos a linha azul escura do fundo que me leva com segurança até ao outro lado e me faz ter vontade de não sair do fundo até as bolhas se esgotarem.

11.30h Regresso ao balneário, tomo um banho prolongado e vêm-me á cabeças imagens felizes de mim próprio sentado a esta secretária a escolher um DVD para a tarde. Fico mais tranquilo e hesito entre o Lawrence da Arabia, o Always, que comprei há poucos dias na FNAC, ou rever Magnolia. Penso no disco do Charlie Haden com o jazz cubano ou na Diana Krall, outra hipótese para acompanhar umas linhas de escrita despreocupada. Entretanto entra shampoo nos olhos e a Diana desvanece-se. Visto-me.

12.45h Ponho uns calções de algodão e uma t-shirt bonita, e vou descalço para a cozinha a pensar nos cereais agarrados ao iogurte que agora me seduzem muito nos últimos tempos. Devoro dois, enfrasco.me de sumo de laranja, morangos no fim e vou para o meu escritório acabar de ler os suplementos da jornalada toda do fim de semana.

14.00h Adormeci e acordo com o telefone. Vou sair ou não vou. Não vou já. Depois telefono a confirmar.
Os 15 minutos seguintes passo-os a olhar pela janela e antes que venha algum pedaço de angústia, ponho a Stacey Kent.
Os pedaços de jornal espalhados acabam de ser lidos com uma atenção ao Fugas, onde lá volto a sonhar com ilhas e carros desportivos.

15.30 h. Decido ver um filme, mas vou primeiro ver o mail, ligo o PC, arranjo tudo para a parte cinematográfica, ligo à internet e leio quem me escreveu.

15.45 h. Decido agora escrever isto e mandar para alguém. Decido sem problema mas antes ocorrera.me fazer disto uma chain-letter, enviar para várias pessoas, talvez ameaçando que se não reenviassem logo para mais cem poderia o Vesúvio entrar em erupção ou o Tejo galgar o Parque das Nações e estragar a vida aos peixes e aos tipos que correm atrás de bolas, pontapeando-as com tirania.


16.30h . Algo me faz falta e acabo por ir ao cinema, a angústia afinal voltou.