quinta-feira, novembro 25, 2021

Regresso por um fio: pickpocket, um pequeno ladrão

👀

Pode ser saudosismo ou outro ismo, mas acreditem: é para divulgar o melhor que tenho lido (também pode caber do pior) e evitar a solidão do ora escreve ora não.

Assim, alguns anos depois, regresso ao meu primeiro blog e vou dar-lhe combustível nem que seja só para eu contemplar.

Escrever é um acto profundamente difícil e consumidor de almas, enquanto a folha continua branca ou salpicada de coisas sem ligação. Entretanto aqui vão comentários e sugestões dos muitos livros que leio.

__________________________________________________________________________________

domingo, julho 25, 2004

The end of this affair


A pretexto de um acidente "informático" que afectou o domingo de hoje, em que me cansei de escrever templates e a palavra "pickpocket", após um ano e 5000 visitas, muitos comentários e bocas, acaba aqui o Pickpocket.

Na pouca transparência de alguns posts se reflectiram alguns maus momentos, pequenas crises e maus humores do autor. Alguns ficaram amenizados pela escrita digital aqui feita como se explodissem para os oceanos, outros nem tanto. Uns causaram impressão. Outros não.

Aqui ficou a experiência de um romance escrito que se completa noutro lado, aqui ficaram os ecos de outros, esses sim, vividos.

Daqui se partiu para conhecer outros que usam estas formas púdicas e públicas como uma das formas de se expressar.

Quem reler o que aqui escrevi e que descubra também o que não consegui dizer melhor, faça disso um presente meu.

O autor continua, noutro blog, que ele espera que seja mais bonito. Num blog ou num pedaço de papel tudo se pode escrever, com a restrição simples de não deixar o papel ou o ecran em branco !

Vou terminar com um poema de António Gedeão (o ultimo de um dos seus livros) e começarei o novo blog com o primeiro poema desse mesmo livro .




Poema de andar à roda

E nem podia ser de outra maneira

Como as ondas do mar que vão e vêm
pela atracção da Lua
outras ondas se alteiam, atraídas
por outras luas, satélites do rosto.
Enquanto umas de amor cobrem as praias
e as penetram de espuma
estas não amam, não molham, não se esgotam.

Mudam de cor, apenas.

sexta-feira, julho 09, 2004

Sinal para os tempos que não falam


Talvez seja sina. Isto é sinal, um mau sinal, ou pelos menos é sinal de que se escrevo é para não falar.

Para não falar, só porque não há ninguém para falar. Ou todos os que há para falar não são os que eram necessários para ouvir o que houvera eu querido dizer.

Assim, venho aqui e escrevo, escrevo que parto hoje, não falando. Toda a gente parte de todo o lado para todo o lado, e o animal que me transporta já trouxe outros que partiram para aqui. Tal como eu saio daqui cruzando-me com eles, eventualmente poderia cumprimentar um passageiro ou outro, ou mesmo interpelá-lo: veio de lá? porque vem para cá? eu vou para lá !

Assim, venho aqui e escrevo, sem saber se alguem lê, apenas para não falar. Para não dizer a quem poderia não querer escutar, e assim se perder a possibilidade de eu entender, porque o que dissesse não faria ricochete e não haveria a volta das palavras de resposta que nos fazem entender porque falámos assim ou de outra forma qualquer.

É sempre outro o tempo, é mesmo uma banalidade escrevê-lo. Mas em cada tempo que é outro, se olha para outro tempo cheio de momentos: parece ver-me ali infeliz, no outro tempo, naquele tempo, mas se o sentia então agora parece-me um tempo mais doce, quase infantil. Porque o outro tempo que não é o de hoje, qualquer outro tempo, é um tempo tranquilo porque resolvido.

Tal como se folheia um livro que já se leu até ao fim, de que se sabem já os segredos, mas em que lemos passagens de um momento, saboreando a emoção daquelas páginas, sabendo embora o seu desenrolar e epílogo.

Não há portanto tempo de momentos infelizes, da mesma forma que não há agora tempo de momentos felizes.

Heads will roll (II)


Who knows: perhaps eyes form in space
and look on everywhere (Rainer Maria Rilke)



Caravaggio
Salome with the Head of the Baptist c. 1609
Palazzo Real, Madrid

quinta-feira, julho 08, 2004

Para acabar de vez com as eleições


eu por mim passava bem sem eleições. Para quê? se estamos tão bem no poder, podíamos mesmo anular o método e passavamos a eleger o 1º primeiro ministro em Conselho Nacional, sempre. Bem eu até nem me importava de ir a votos, mas só se tivesse mesmo a certeza de que era eu eleito, assim só para saber se era muita gente a votar ou não. Mais nada, porque eu tenho a certeza de que o interesse nacional precisa de mim e dos meus amigos para estar sempre no governo. A governar, a governar-me, a governar a casa punha lá uma gaija boa, as outras eram assessoras, uma espécie de vassouras de gaijos incómodos. Punha até uma cabeleireira só pra elas. As eleições não fazem falta nenhuma, e a prova é que houve até uma grande abstenção dos meus amigos e conhecidos nas últimas, que era pra eleger uns gaijos pra europa, o que também não é mais preciso proque tá lá o Zé manel. Se a malta conhecida não foi aos votos e daí não veio mal ao mundo é porque tenho razão. A chatice que são as eleições e o dinheirão que isto nos custa não valem o trabalhão que nos dá. Também os jornais já pouco mais dizem, a não ser que estamos todos de acordo. Poupávamos em jornais, poupávamos em informática, que esta maquineta dos votos só dá dinheiro a gaijos que mexem nos botões e depois aquela porra encrava imensas vezes. Eu sempre disse que não achava bem ter tanta rapaziada a mexer nos computadores que só trazem custos e afinal pra quê ? Têm a mania que sabem o que a gente quer, mas depois fazem coisas que a gente não percebe e ainda ficam com ar de mal dispostos.

Temos muito pra mudar no País. Isto são só ideias base.


Bittersweet


1. Amanhã o PR vai convocar eleições. Não sei porque lhe chamam antecipadas. Parece-me que antecipámos a necessidade de eleições, por isso o que é antecipado é a sua necessidade.

Jorge, ainda bem que não tens medo da direita desgovernada e, que diabo, se houver manifestações contrárias é nas discotecas !


2. Amanhã o PR vai dar uma segunda oportunidade à "maioria". Parece-lhe que a "estabilidade" é mais importante



Jorge, então tu vais passar 10 anos a dizer " segurem-me que eu dou cabo deles'"? Não vais, pois não ?

quarta-feira, julho 07, 2004

O livro gordo


A garantia de que outros reconheceram "que é bom"
Tem 540 páginas mas não importa porque "se lê muito bem"
Não é preciso experimentar porque "é garantido que não se consegue largar"
Compra-se como um seguro de leitura !

A garrafa tem dois aspectos: meio cheia ou meio vazia.

Os livros gordos que fazem sucesso fazem-no porque de repente ganham um libelo de qualidade associado a uma facilidade de leitura; é isto que atrai as pessoas. Pelas margens ficam as fantasias de Marion Zimmer, as aventuras de Harry Potter, os pastéis de Robin Cook, bla bla bla. Este epicentro de leitura "boa" e "fácil" tem justiças e injustiças.

Nas pontas "boas" ficam o início com o Nome da Rosa de Umberto Eco, e a última saliência em Portugal com o Equador do Miguel Sousa Tavares.

Sim , é o Código da Vinci de Dan Brown, leia-se pelo espantoso ritmo da escrita, pela montagem dos capítulos, milimétrica. E acima de tudo porque está meio mundo farto de histórias de santinhos.

Mas vamos a um desafio: quem quer ler o Fantasma de Harlot (1100 pgs) de Norman Mailer ?. Eu li-o na piscina do Hotel Polana em Maputo, em poucos fins de semana, para espanto dos palermas da embaixada americana que nem sabiam do que tratava ! Mas isso são detalhes. A história da CIA, dos Kennedy, de Marilyn, de Cuba está toda ali, e diz muito mais sobre a América do que duzentas mil crónicas politizadas publicadas nos ultimos 15 anos. Como Philip Roth, na Mancha Humana. Livros gordos e apetitosos.




Virgem dos Rochedos - 1483 (Museu do Louvre)
Da Vinci

Raros são os dias (XVI)

Luanda





Agora olhava pela janela do 7º andar, muito tempo depois de tudo e muito tempo antes de poder esquecer a angustia de manhã, a angustia dos locais, todos os que eram reconheciveis, mas também todos os que eram novos e que ela não poderia sentir. Viu a manhã de Luanda, com pouco sol, uma névoa insistente, um cheiro do café, sentou-se na cadeira de verga a olhar mais um pacote onde espreitavam as pontas de uns dentes de marfim, que os habitantes temporários daquela casa (a casa de trânsito, como lhe chamava a empresa que a alugara) compravam furiosamente sempre que se deslocavam a Luanda, a par de bijuteria e artesanato; tudo barato, diziam, com a ideia de decorarem a casa de férias com máscaras indigenas, inundarem a mulher e amantes com anéis de marfim, de jade, cinzeiros de pau-santo para oferecer no Natal, gastavam dólares que o Fonseca, motorista e guia dos locais de compra clandestinos, nunca ganharia em anos de trabalho. Olhou a rua da Missão, demasiado perto de onde ela fora assaltada, demasiado perto da memória que o levava para longe dali, para a praia das Palmeiras, ondas gigantes e quentes, a praia despovoada, um pescador de lagostas com uma tanga desbotada a dizer Arena, e ela, com um fato de banho preto, subido nas ancas que a transformava numa nova deusa de pele escura, mistura de séculos de portugueses com angolanos que os unia de uma forma ignorada pelos perplexos relatores da guerra e da ante-guerra e do pós-guerra, e que alguns escritores angolanos e mesmo brasileiros cantavam e acentuavam, sem eco em Portugal. Olhava a Rua da Missão, mas via o vermelho da terra e os imbondeiros descarnados de braços levantados com pedaços de fruto negro pendurado, a saudade de voltar a casa no Domingo, depois da praia vestir a camisola branca de alças e os calções de caqui e as chinelas de cabedal escuro, o cabelo penteado para trás, o bigodinho recente, depois de um banho no chuveiro do pátio com os outros e as conversas com o pai, sentados nos bancos de madeira enquanto a mãe assava frango, com um avental de flores sobre um vestido beije, cabelo apanhado, um pouco eriçado, como o do pai, como o seu, como os seus olhos verdes que despertavam a malícia das mulatas do pátio, herói de dois golos marcados ao Pita, guarda redes, na eliminatória memorável contra o Petro Atlético, final de juvenis, arbitrada pelo namorado de Laura, mais velho, um gajo meio portugûes, manda chuva da federação, coisas do colonialismo.

Não voltara a entrar na casa da Maianga, não voltara a transpor o portão de ferro. Da janela do 7º andar conseguia ver a Maianga, mas não a casa onde um dia entrara com ela, entre promessas de arranjos e obras nunca feitas, portadas brancas entre buganvílias, pedra até à porta principal, uma sala em baixo com uma estante do pai com gira-discos onde se tocava Sinatra a 78 rotações, dançara com ela the summer wind. Dois quartos em cima uma escada simples sem corrimão, o estilo colonial português de sessenta.
Passara pelo Sahara tantas vezes, tantas vezes sonhara conhecer o deserto sobrevoado, a savana, os rios, as travessias de séculos entre África e Europa, olhar com emoção Sagres e o Cabo, e os regressos para a terra vermelha. Parecia-lhe agora tudo impossível, focou o olhar no vidro, encostou a cabeça e deixou-se levar pela angústia outra vez, imobilizou-se, não era preciso parar o tempo agora, devia acelerá-lo, voar dali para outro ser, tomar outra forma, apagar pedaços do cérebro, trocar de alma, voltar a Lisboa e misturar-se no metro a ouvir os outros, passar a alma angustiada para um desconhecido qualquer, agarrar outras emoções, rir outra vez, esquecer-se dos livros e da musica, ter lido outros livros, ter dançado outra música, trocar de passado, encomendar a alma ao Diabo, um pacto de servidão com o anti-cristo. Desejos de ruptura e focou sem querer o soldado que fazia a ronda com a arma ao ombro. Quem poderia ter desfeito tudo com um tiro, poderia ele roubar uma A47, desejava-o agora, infiltrar-se nos muceques, pagar a quem fosse preciso para saber, vingar-se de quem lhe roubara tudo. Nunca o faria, sabia-se desajeitado com armas e raquetes de ténis, poucas vezes andara ao murro. Saiu desesperado, nem o diabo o salvaria.

domingo, julho 04, 2004

After the fall

Como antecipado pela voz dos deuses, o mito terminou :

Mythos


Mythos: o que não pode realmente existir, segundo os gregos. Ou, segundo outros, o que aconteceu pode repetir-se, pelo poder dos rituais. Por se contar a história, o mito, uma e outra vez.


Por desafiar a vontade de Zeus, Prometheus foi amarrado a uma coluna onde uma águia vinha debicar-lhe o fígado. Todas as noites voltava o fígado a reconstruir-se e de novo voltava a águia no dia seguinte para o comer, para sofrimento do mártir.
Mas a ira de Zeus atenuou-se e deixou que Hércules abatesse a ave, glorificando-se e atenuando o sofrimento de Prometheus. Este permaneceu cativo, no entanto, porque não há perdão para quem afronta Zeus.

sexta-feira, julho 02, 2004

Raros são os dias (XV)


Luanda



Ao tentar parar a realidade que estava ali a bater-lhe com força desqualificada, ao tentar olhar sempre mais para trás, ao tentar somar os 34 anos de vida com os 34 anos que levaria de novo até chegar ao princípio, que apelaria a qualquer potestade para que fosse um fim, viu o rosto de Laura bem junto ao seu, uma carícia de ambos, que juravam alguem jamais ter feito, encostavam a face enquanto a mão deslizava pela outra face . Viu e percebeu que o veria assim até ao fim dos tempos, que ela teria sempre 27 anos, que os seus cabelos não embranqueceriam, que as rugas nunca apareceriam, que nunca deixaria filhos, nunca viajaria para além de Luanda e Lisboa, pareciam mesmo juntas, como se o mundo pequeno se reduzisse a Telheiras e à Maianga, com idas a Belém comprar pastéis, rir com ele no átrio do CCB, ver os filmes nos ecrans pequeninos do Quarteto, tomar chá na pastelaria do Pedro Simões, rir sempre na discoteca Kunda, com fumos e ouvidos a estalar pela manhã de Lisboa. Percebeu que não ia poder parar a realidade e pôr a vida a andar para trás, e caiu para cima dos policias magrinhos, cortando as frase arrastadas e timidas com que tentavam dizer o que ele já tinha adivinhado mesmo antes de baterem á porta, mesmo quando o carro verde subia a rua e parava entre fumo espesso junto ao portão onde brincavam as crianças com esperança. Acordou e a angustia demorou só 5 segundos a aparecer, estava na cama, em pé os vizinhos a contar o que não era preciso contar, a chorar pelo que ele ainda choraria e não tivera lucidez para fazer, vozes inesquecíveis, vozes que tentaria mais tarde recordar melhor.

Pouco tempo depois de ter olhado a rua e visto o carro verde que se aproximava, e com ele a vida que não andaria para trás.




quinta-feira, julho 01, 2004

Wat is dat ?


A presidência europeia é da Holanda, apenas duas horas depois de terem sido espremidos por nós, e apesar do nosso coração pequenino ter batido mal, como sempre

Nem sei porque acho isto tão importante, mas esta safadeza do Jose Manuel Barrosso de desligar do PSD e avançar para CEuropeu tem dedo do futebol. Não interessa se é muito importante ou pouco, mas alguém passou a ganhar, quando costumava perder (veja-se o post sinistro deste Pipo, lá mais abaixo, para o confirmar), alguem veio para a rua, e não era coisa que se pensasse fazer, alguem comprou bandeira (sim a do Expresso, claro), e não tinha imaginado fazê-lo, alguem ficou rouco depois da televisão ter dito que o árbitro apitou para o final do jogo. Pela 4ª vez !!!

Não me falem em depressão nacional, que nem sei o que isso é, a não ser que foi inventada pelos jornais, não me digam que "só este país" , porque não se pode confundir os duros com o durão, nem me digam que no dia 5 de Julho volta tudo ao normal. Na rua eu falo com todos e rio para todos, todos os meus tiram fotografias com os teus, todos dançam a pimbalhada mais reles que tocar, todos cantam o hino nacional.



Ei ! you intellectual giants ! Here is a piece of pure social science !

Van ...... quê ??????

A equipa de Van's foi descascada esta noite, os queijos comidos e não se fala mais deles.

Não sei dizer nada em Holandês, por isso aqui vai uma lembrança para a primeira noite da presidência europeia da holanda:

Não levam a taça mas levam um Durão Barroso.

sexta-feira, junho 25, 2004

Beckham is a jolly good fellow !










Still looking for the ball that went straight up into orbit !




quinta-feira, junho 24, 2004

Raros são os dias (XIV)

Luanda


Recusou o convite para passar para o banco do lado e tentou afastar o medo, com um grito, como daquela vez em que o professor de Ciências a esperou no pátio da escola e convidou para explicar em sua casa porque razão o sumo não cai das palhinhas quando seguramos uma das pontas com um dedo. Viu os olhos amarelos e o esgar trémulo de um lábio, como estava a ver agora, viu a mão do professor estender-se para o seu cabelo, como aquela mão se estendeu, sentiu o cheiro de um suor que se mostrava em gotas pequenas na fronte do professor, como sentia agora, cada vez mais próximo de si, tinha de ir a Chicago, pensou. A resposta estava lá, tentou pensar depressa numa solução, não ia entregar o carro daquela maneira estúpida, era preciso falar, explicar, talvez não devesse ter gritado, talvez não devesse ter pensado nos olhos verdes de Marcelo antes, com a face encostada a si, e desejar que fosse ele, e não aquele estranho, mesmo antes de olhar o pai, de sentir a terra vermelha da sua terra gritar de dor pelo sangue de tantos amigos, de uma lágrima inexplicável ter saltado e misturado com o suor daquele rosto agora colado ao seu cabelo e um barulho definitivo ter rebentado o timpano esquerdo, deixando que o frio se aproveitasse da sua fraqueza e tomasse o lugar que só deveria ser seu daqui por muitos anos.
Absolutamente impossível imaginar que o vermelho se alastrasse pelos ombros, como se o baton de repente puxasse pelos lábios e sugasse todo o sangue, de repente a boca ficasse muito aberta e espantada num sorriso estranho de máscara, e o sangue iluminasse os olhos já indiferentes á vida, como se o sangue fluisse mesmo do coração, e chamasse por ele. "Marcelo, se eu morrer levas-me para ao pé do meu pai, está bem?", dissera-lhe um dia quando voltavam do alto do monte que domina Luanda, e onde o cemitério é calmo como em mais nenhum lugar. Como em todos os lugares do mundo onde ninguem fala, onde há pedras e flores, e arvores longas que parecem tentar sossegar quem lá vai e olhar para o lugar prometido, mesmo ali onde se perde a esperança para sempre. O lugar dos sinos tristes e compassados que anunciam entradas definitivas num mundo, outro mundo, sem nada para as almas, sem nada para além dos bichos invisíveis, onde as árvores longas cobrem de tristeza quem ali vai à procura de um encontro consigo, a pretexto da memória de outros lugares. O lugar onde Deus não está.


quarta-feira, junho 16, 2004

Raros são os dias (XIII)

Luanda

Nessa manhã saira de casa com uma pasta, condizendo com a sua fatiota saia e casaco vermelha e cinzenta, uma pasta preta com as iniciais TM&A, apenas um café e torrada sem manteiga, iogurte bulgaro, algumas horas depois de um breve sono agitado de números e fantasmas de dossiers debaixo do braço, a agitação de uma descoberta fantástica, mais números, uma viagem a Chicago em perspectiva. Laura investigava, a auditoria que conduzia fascinava-a e punha Marcelo numa espécie de suplente, o que o desesperava e fazia imaginar traições e abandonos que ela desmentia com um sorriso estranho que ele sempre adorara e respeitara. Despediu-se á pressa, bateu a porta, enquanto ele vagueava pela casa em pijama de seda azul, com uma lapela onde se insinuavam dragões chineses e porticos vermelhos: a porta do khmer vermelho, chamara-lhe ela, a sorrir, sempre com os olhos em alerta, não fosse alguma borboleta escapar-lhe do angulo de visão e esmagar-se contra o espelho. Impossível viver mais depressa, pensava Marcelo enquanto olhava pelo portão de ferro, cheio de um desejo por ela que o atirava por vezes contra a cama e a roupa que ela deixava ao acaso espalhada pelo quarto, á procura dos sabores dela, dos cheiros dela, da imaginação dela que o pregava ás costas da cama, enquanto ela nua lhe soprava palavras e se encavalitava firmemente com as mãos na madeira, encurralando-o, impondo-lhe os ritmos, arrancando-lhe as palavras que ele detestava dizer, temendo alguma desconcentração que a desiludisse, a fizesse sair do transe.
Viu ao longe o Taunus, tirou as chaves e caminhou segura para o carro, mala ao lado, telemóvel em posição de combate, 8.00h da manhã; uma hora depois estaria a receber a 1º chamada do escritório de Lisboa. Atravessou Luanda pelo largo do Kinaxixe, olhou ainda outra vez o tanque ferrugento no centro da praça, buzinou aos miudos da rua, mexeu o cabelo, olhou o espelho, não gostou, parou. Tirou a escova da mala, não estranhou o toque ao de leve no vidro, algum miúdo a pedir, arranjou o cabelo sem ligar e de repente viu-se rodeada de faces impenetráveis a olhar de todos os lados de todos os vidros da frente do carro. Estremeceu, lembrou-se dos avisos, o carro balouçava como se de um barco se tratasse, olhou a mala distinta da TM&A, abriu o vidro e gritou: fora daqui!. Os lábios vermelhos assustaram aqueles pobres diabos, movidos pela curiosidade, saltaram como esquilos e desapareceram a rir.
Com a raiva deixou o carro ir abaixo, deu volta à chave, e nesse momento sentiu um silêncio envolve-la, como se os passos de gente se evadissem num espaço irreal para ficar só face a face com o medo.


segunda-feira, junho 14, 2004

Raros são os dias (XII)

Luanda

7.30h - Ao olhar a janela, o mesmo susto de sempre: um soldado de "kala"ao ombro, passava revista ao pátio da escola. Ainda não se habituara ao cenário, mesmo visto do 7º andar do apartamento alugado, com muito mais espaço que a sua casa de sempre, na Maianga; ainda não se habituara á ideia de sofrer a ausência de Laura. Inoportunas as ideias do dia em que vira subir a rua um carro verde, muito fumo de escape como era norma naquela cidade. Nesse dia resolvera ir a casa a meio da manhã, tomar um cafezinho, fazia aquilo poucas vezes, muito menos vezes do que as que se entretinha a contar ao seus amigos da Universidade, aos portugueses em especial. Gostava de os olhar sorridente e lembrar-lhe as dolorosas idas e vindas pela 2ª circular, vindos do Cacém, records de 3 horas de caminho, sextas feiras loucas de paixão pelo automóvel, uma ópera não chegaria. Tomar café a casa a meio da manhã?
O automóvel verde encostou ao passeio curto, degradado e sujo, sem cães, com crianças de olhar bonito com uma esperança de nada e de tudo o que pudesse ser outra vida, a sua vida. Sairam dois pequenos homenzinhos magros e antes que batessem á porta ou dissessem fosse o que fosse, Marcelo já sabia que a sua vida mudara alguns minutos atrás, antes de alguém dizer algo, ele olhava a vida de alguns minutos atrás e via-se a trocar frases banais com os alunos, a falar ao telefone, mais para trás, a jantar arroz frio com peixe frito, acompanhado de cerveja, mais para trás, na praia da Corimba, entre palmeiras, mesmo rodeado de latas de coca-cola, mas feliz, sim mesmo feliz, quando ao domingo olhava com rancor antecipado as maldades que as segundas feiras fazem a quem é feliz, mesmo ainda que a Física dos homens fosse impossível, ele não queria olhar mais para o futuro, não queria mais a sua vida. Ouviu o relato dos polícias como se tudo estivesse escrito antes, num drama de Lobo Antunes, sem paixão aparente, com palavras incertas, com vento por trás a soprar as palavras desnecessárias. Um taunus velho que oferecera a Laura ainda era objecto de cobiça pelos deserdados do petróleo, pelos errantes da guerra, para trocar por uns dólares.
"Laura, não penses em oferecer resistência, se isso acontecer dá-lhes as chaves, pensa em nós e não no carro" dissera-lhe após uma conversa recorrente em Luanda: assalto com pistola em punho num semáforo, quem resiste é morto (friamente dissera o Pita, ao que ele retorquira que quem mata sem ser friamente deve ser um tipo qualquer de romance policial, vindo directamente da página 48, onde normalmente se mata o primeiro, depois pode acontecer que a história se complique e seja preciso matar mais um ou outro. Friamente claro, como Ripley, que tinha uma maravilhosa Heloisa que o esperava numa confortável casa em Paris e seria a musa inocente que inspirava o gelo dos crimes). Mas ela era altiva, achava impossível que a sua bela cabeleira pelos ombros e (sempre) contrastante com um baton vermelhissimo, aliada a berloques comprados em Lisboa na casa Batalha, pudesse fazer com que alguma pistola se disparasse a não ser que um acaso...

Durão e Scolari: os bandeirantes


Estes homens não perceberam bem de onde vêm e para onde vão.

Os portugueses com a sua antiga veia subserviente, amiga da força bruta e ditatorial, aplaudiram nos ultimos dias a força da palavra ilustrada com murro na mesa e seguiram a onda da bandeira. O seleccionador "nacional" disse e a esperança do povo pôs bandeiras nas casas e nos carros, sublimando o facto óbvio: a portuguesa equipa joga agora pior do que quando o simpático de bigodinho à la anos sessenta pegou nela, com milionárias expectativas no bolso.

O óbvio de tão chocante cegou tudo: nenhum jogo de "preparação" acabou com menos de metade dos que o iniciaram: nem equipa nem estilo de jogo, com muitas afirmações de "sei não", "estou sabendo de tudo", "há gente tentando boicotar meu trabalho", e "no final a gente fala".

Elegendo como inimigos principais o FCP ( e eu um tipo do Benfica até se devia arrepiar com isto...), esqueceu porque razão o dito clube ganhou quase tudo o que havia para ganhar. Na equipa portuguesa nem teve coragem de eleger o "brasileiro" como indiscutível, o que até nem seria grave não fossem os tremeliques de uma equipa que claramente o bandeirante arruinou.

Força Portugal perdeu ontem e voltou a perder hoje. A Grécia e os eleitores portugueses deram lições. Mas não tenho esperança que nem Durão nem Scolari se saiam bem e dignamente de isto tudo. O euro 2004 tem assim a sua suprema ironia: mostrámos quem não queremos, ganhando e perdendo.

Valha-nos Santo António.


domingo, junho 13, 2004

Raros são os dias (XI)

Lisboa


18.00h. Saiu para a chuva de Lisboa, olhou para trás, para a porta de onde poderia ele entrar daí a minutos, para a porta que poderiam abrir juntos, se não foram tantas dúvidas naquele átrio, que parecia de repente ser um fim de ilusões, parecia de repente intransponível, pesado como se de ferro se tratasse, como se uma ponte levadiça estivesse ali, ela fosse uma princesa aprisionada e o seu cavaleiro abatido por inúmeras setas, quando se aprestava para a salvar, o seu cavaleiro imaginado tantas vezes, de repente falhasse a aparição.

quarta-feira, junho 09, 2004

Raros são os dias (X)

Lisboa


Uma depressão, se calhar depois ela tinha uma depressão, e ele tinha de voltar a vê-la, se não fosse aí seria talvez por acaso. O acaso que no desespero dos dias sem ninguem para falar o levara a mudar tudo para casa dela, depois de ver a praia, depois de ter bebido muito, depois de ter visto seres de mão dada, depois de ter desesperado das mulheres que o queriam e que ele desprezava. O menor dos males, não queria viver sozinho, queria uma casa, uma mulher, queria ter um filho!
Desceu depressa para a garagem, tinha de ir depressa para as Laranjeiras, ela esperava, era um dia decidido há muito, arrancou, desesperou com os carros que impediam uma saída rápida, entrou no trânsito da cidade como quem enfrenta a última aula do ano, com os alunos impacientes, ele impaciente mas com um brilho e uma coragem de festa de sentidos, alerta, sempre com um sorriso.



18.00h. Ligou as luzes do carro, enquanto olhava para o semáforo vermelho. Conseguia imaginá-la dentro de casa, a inventar sítios para colocar as coisas, a fazer planos para os domingos â tarde, para estarem os dois. Contar-lhe tudo, isso agora era o mais importante, contar-lhe que ficariam livres para os dias como quisessem, deixar de vez o vaivem para Luanda.

quarta-feira, junho 02, 2004

Raros são os dias (IX)

17 h. Fez mais uma vez os 4 passos de distância entre o elevador a porta, acendeu mais um cigarro, olhou as caixas de correio, o átrio com uma planta enorme e uma secretária sem cadeira, olhou o átrio que poderia ser o da sua casa, seria? e saiu para a chuva. Afonso chegaria daí a pouco mas não a encontraria no 8º andar que não chegara a ver. Talvez chegasse no seu blazer azul escuro que repetia com a gravata azul de risca vermelha e a canção de Natal com violinos que entoava quando olhava as lojas iluminadas, talvez pensasse nos lugares de Lisboa que perdiam sentido quando já se perdera a memória de os viver com alguém, cheios de nevoeiro a escapar às obrigações de um dia com horário, em todo o lado as ruas percorridas com ela, indiferentes por algum tempo, mas sempre com uma vingança contra a passagem apressada, depois um dia quando se passa por lá alguma coisa infecta a alma e amarga os sentidos do tempo perdido, por um dia, por tanta vez se ignorar o que os olhos podem ver e passam.



17.35 h
Deu uma olhadela rápida ao relatório e fechou o computador; não era possível disfarçar mais para si próprio e muito menos para os auditores, não havia mais espaço para encobrir imposto, rasgar facturas e impingir aos espanhóis lingerie de má qualidade misturada com boas peças de roupa. Tinha de dizer adeus depressa aquela rapaziada das cuecas e soutiens, antes que tivesse de fazer malas à pressa, embarcar para o Brasil, para o Yemen ou para Angola, Abandonar a Laura e o projecto "impossível"de viverem juntos.
Mas como fazê-lo? Como, se a grande oportunidade caminhava para ele, em grandes imagens de imponentes viagens ao Belize, o iate em Vilamoura, finalmente, nada de pequenos barcos a gasolina para passear e impressionar os habitantes de subúrbio de Lisboa, comprar em Cannes, comprar assinaturas no Met, na Opera de Paris, jazz em NY, sempre que lhe apetecesse. Mas a Laura.
Tinha de sair depressa, era um dia daqueles que eles sabiam ser mais um para nunca mais esquecer, aqueles dias em que os detalhes saem de repente dos olhos das pessoas que os recordam, no olhar para o carro do lado, num bar, a olhar para o espelho enquanto o outro lava os dentes e olha para nós, a olhar para quem colidiu na esquina, escancarado no passeio depois de tropeçar, um olhar. Seria um desses dias, porque, sem saber nada de nada, sem ter comprado nada a não ser um bule de chá, iam alugar um T2, com vista ou sem ela, ele não queria saber; sem saber o que dizer à Luisa como e a que horas, nem a imagem desconfortável das malas feitas para sair de casa, nem o choro, nem as fotografias do caixote, nem os menus dos restaurantes, o desespero dos clichés. Como seria ? seria assim, como num filme italiano, com ela a rasgar roupa e a atirar coisas, ou como num filme de Eastwood, com ela sentada num sofá, com lágrimas e sem olhar para ele, a mandá-lo embora com frases curtas, sem poesia, sem grandeza, o que faria no minuto seguinte? Ia ao café, metia-se no carro, ou ia passear pelo rio, ou ainda...

segunda-feira, maio 31, 2004

Raros são os dias (VIII)

Lisboa - Luanda



Marcelo, sabia agora, não o amava, não sentira a emoção de querer alguém, como se a voz dele não tocasse a imaginação, como se os dedos dele não tocassem os seus cabelos negros, como se o seu corpo não a fizesse arrepiar e estremecer e desejar sempre mais, como se fosse impossível separar-se de um ser a quem se deu a intimidade das lágrimas misturadas com a raiva do acaso imperfeito, como se fosse a única ponte entre o desespero e os dias de sol, passados numa esplanada do Castelo a rever papéis com Afonso quase, quase a chegar.
Arrepiou-a uma rajada que lhe apagou o cigarro, Marcelo que faria se soubesse, não merecia, dizia sempre a Afonso, não conseguia explicar a um o que não sabia como dizer a outro. Passava os dias em Lisboa com Afonso, insegura na segurança da cidade, e depois voltava para a insegurança de Luanda, segura no braço de Marcelo, na casa da Maianga.
Não conseguia subir o elevador, olhava a chuva e a porta, surpresa por tanto hesitar, ela, um vendaval no escritório, os gestos firmes de entrar no 12 º andar com barulho de roupa e mala, com sorrisos de batôn vermelho, com vestidos de cores fulgurantes, com a certeza de ninguém estar melhor com a vida, com as opiniões atiradas para o ar, com verdades impossíveis de escapar, com os olhares tímidos de quem gostava de contradizer mas não podia, a resistência do olhar casava com a voz e ditava em vez de recomendar, ficara-lhe aquele jeito de certezas disparadas do nada, como se estivesse em palco, uma mulher fatal num trio de jazz, com baterias resplandecentes, piano engraxado onde a cantora se penteava, se deitava num vestido e sapatos vermelhos, um baixo onde um negro sorridente com cap se encostava, e ela chorava com a voz, ou gritava : body an soul !
Menina, eu perco-me consigo, assim nem consigo conduzir direito, depois conta-me tudo. Era assim, quando chegava a Luanda, seria assim semanas depois, quando sobrevoava Lisboa na madrugada, e mesmo com os olhos cansados de dormir aos bocadinhos, entre olhares perdidos nas estrelas focados através da janela oval, quando os outros cobertos de mantas se apagavam, e ela sempre viva, pensava no prazer da chegada, na incerteza de qual era a sua terra, enquanto o ruido de bandejas metálicas começava, o cheiro a omelete de avião, as meias dos outros em lugares de sapatos, como gatos malcheirosos que atravessavam os corredores, cambaleantes e de olhares papudos e cabelos esticados e hálito repulsivo.
Á procura dos anjos no meio das estrelas em cada viagem, entre os papéis e as leituras recomendadas, entre as revistas da "especialidade" e os jornais de economia, os que partiam a realidade aos bocadinhos, entre ler o romance de Lidia Jorge e a cronica de viagens de Chatwin, pick yourself up, dust yourself off, Krall no walkman, a lembrar-lhe a inspiração, and start all over again.
Levantava-se e media o avião, imaginava a sua forma de canudo arredondado a velocidades de um mundo que não entendia, e nada levava a sensação de voltar à outra vida, entre os continentes, entre os sabores, um previlégio que ninguém lhe tirava, a sua existência apaixonada, entre os dramas do prazer ausente e a felicidade de olhar a sua vida de longe, de muito longe, de se deixar envolver pela bruma da madrugada de Lisboa, num taxi, ver Lisboa antes da massa de gases tóxicos disfarçados de pessoas que a invadia todas as manhãs, antes de as vidas pararem em carros e autocarros, antes mesmo de um calor ténue e a luz branca absorverem as ideias de Lisboa. The night they called it a day.
Da Portela ao Campo Pequeno, do 4 de Fevereiro à Maianga, as viagens pequenas que eram o epilogo de um conto sempre triste e emocionante ao mesmo tempo, de ausência permanente transformada, em 7 horas de estrelas desejadas que ficavam para trás, como já tinham sido há muitos muitos milénios.

domingo, maio 30, 2004

There's a ribbon in the sky

Lisboa- Terreiro do Paço ---> Algés ----> Lisboa- R. do Crucifixo

Este passeio é feito a correr, entre nuvens de calor, entre 900 pessoas e entre muitas bátegas de calor húmido, com o sol a perguntar porquê. Não sei porquê este desafio que se repete em muitas outras corridas loucas em que a camisola se inunda com a água misturada.

percorro a 24 de julho e vejo os que saiem da K com cigarro na mão e garrafa de água na outra. Alguma coisa nos une: a união da noite com o dia, a necessidade de competir com alguem que somos nós e mais ninguem. Na passada regular acabo por encontrar a deusa da corrida, falamos e juramos acabar a corrida, custe o que custar.

a imaginação passa a controlar os passos, agora que nos aproximamos da ponte, depois Belém, depois a marca de U turn, os outros que estavam para diante deixam de contar e olho com mal disfarçada satisfação os que eram eu alguns minutos atrás. Depois de novo belém, a ponte, as docas, e tudo o que se repete há muitos anos. Onde está a medalha ? é preciso continuar... deusa ali mesmo ao meu lado. Respira-se calor e humidade, já só faltam 3 km para os 15, é preciso encontrar pensamentos que ajudem, passam electricos, carros, vou cantar qq coisa para dentro (somewhere some day, we'll be together, como cantei a olhar para o Cristo-rei há poucos anos, no meio de uma multidão eufórica, preparada para correr 21 km)

Não descobri porque faço este sacrifício físico, mas não é tão diferente de acordar todos os dias e ser levado a fazer qq gesto necessário.

Olho para cima, sei que venci de novo. Contra mundum

sexta-feira, maio 28, 2004

Raros são os dias (VII)

Lisboa


Durou dois meses e tal esta expectativa de alma, uma viagem a Luanda não esmoreceu, nem quando Marcelo a olhou como sempre fazia com o sorriso mais bonito do mundo, como se soubesse pôr a alma dela outra vez no lugar certo. Nem mesmo quando pensou que a casa da Maianga era o melhor lugar para respirar, para tirar da pilha dos livros que têm de ser lidos, um, aquele que fala deles, aquele que faz tudo lembrar quando parece tudo esquecido, aquele lugar incompreensível em que a alma se ri para as palavras que dizem para dentro que não há caminhos por ali. Olhou para Marcelo no aeroporto, para o sorriso, sentiu-se bem, aconchegou-se, pensou que aquele era o homem dela e até era capaz de lhe dizer tudo, de lhe dizer que a fantasia dela ia aos poucos destruindo o que eles eram, ia comendo devagarinho, como faz o tempo ao corpo das pessoas, mas que não tinha importância, era uma alma ausente aquela para onde ela olhava, ele era o corpo. Dez vezes olhou Marcelo, dez vezes saíram palavras ocas onde deveriam sair as outras, agarradas desesperadamente à alma, não conseguia libertá-las, e continuava pela noite, acordada, suada, desiludida pela bactéria que comia aquela vida, a minha vida.
Muitas horas e dias de conversa depois, ele estava à porta do Hotel onde ela costumava ficar, depois de uma hora a mudar vestidos e blusas, arrependida mil vezes do perfume, muito doce, ele não ia gostar, devia ter posto outro mais neutro, como se fosse Inverno rigoroso, como se caísse neve naquele primeiro encontro, como se fosse um encontro no extremo de um pontão com um farol imponente, mas não, era Novembro, fazia sol, um mês improvável para romances inventados.
Era tarde, ele chegaria daí a nada, não era preciso voltar atrás, saído não do nevoeiro de Novembro, mas caminhando pela avenida abaixo, com um casaco azul pela mão, trazendo a bactéria que ela temia. Sabia que a fotografia era para o tempo amarelecer, mas quem ousa pensar isso no momento em que tem a certeza de que vai ser capaz de coisas impossíveis, para quem tem a certeza que a imaginação dos outros, no cinema, nas telas, é aventura de almas livres.
Agora, ela estava ali, á porta de um prédio recente, nas Laranjeiras, pronta a alugá-lo, para eles. Pelos meses rápidos ficaram as viagens a Luanda, o Fonseca à espera na saída do controlo, Marcelo cá fora sempre sorridente, o mulato mais bonito de Luanda, como ela chamara quando o beijou pela primeira vez, e conseguiu fechar os olhos que não queria tirar do verde água dos dele; as águas da baía de Luanda protegeram muitas vezes a ansiedade dos encontros, o piano de Jarrett também, last night when we were young, o amor ao jazz, as diferenças do jazz. Os fins de tarde de Luanda vieram até ali, passou a mão de novo pelo cabelo, sentiu a tristeza de quem não sabe como transformar os sentidos em actos quotidianos, a culpa, sempre a culpa dos actos que falham os sentimentos. Eu gosto mas não vou, eu quero mas não posso, eu faria mas hoje não, eu farei se amanhã, eu quero que sejas assim, eu quero ter-te hoje, mas não estás, eu repito este gesto contigo, mas agora não podes.



Tristar - para lá



Quando estava farto de estar sentado, caminhava até ao sorriso antipático das semi-tias da TAP e encontrava na fila da frente este postal. Neste avião comecei as viagens entre continentes, e aqui começa a história das viagens de África.

Começavam entre filas de gente, horas de espera, embrulhos em montes infindáveis. Depois, dada a angústia de partir "para lá", sentava-me nas cadeiras amarelas e pegava no livro de viagem. Não lia, mas folheava e antecipava as horas, enquanto olhava para os parceiros de viagem; tentava ver ansiedade, alegria, tristezas, e invejava os sorrisos que pareciam muitos.
Eu tinha pensamentos terríveis, das toneladas a levantar voo, tomava um dormicun com 2 whiskies, e esperava mais umas horas. Punha o walkman a jeito, punha Bach para acompanhar a descolagem, e aí tinha o primeiro momento de aventura: os 3 minutos acompanhados pelos Concertos Brandeburgueses e pelo tremor da bagageiras e dos embrulhos a cair.

passava o jantar da meia-noite, pegava no livro e á 3ª página começavam as pessoas do lado a confundir-se com o sono. Sempre achei tranquilo o momento da descolagem. Calados, os passageiros pareciam poucos no avião gigantesco, o wide body, nome simpatico para aquele prédio ambulante.

No ar dormia aos soluços enquanto Bach e o comprimido faziam o resto. As trovoadas passavam a estar entre a minha cara multidimensional reflectida nas camadas de espelho-plástico e o solo.

terça-feira, maio 25, 2004

Raros são os dias (VI)

Lisboa




16h. Olhou de novo a lista. Tinha a certeza que estava tudo, mas parecia que algo devia estar e não estava. Não, eram coisas da superstição, dia de chuva, dia de cabelos difíceis, dia de correr tudo mal, dia de ver o espelho de soslaio, para não ficar mais acesa a luta com a imagem. Levantou.se para sair nas laranjeiras, com o metro quase vazio, seria mesmo ali? O anúncio dizia Metro: Laranjeiras, aluga-se mobilado, T2, vista deslumbrante sobre Monsanto. Seguiu as indicações dadas pela imobiliária e deu com a porta, trinco avariado, começamos mal, mas seguiu para o elevador, 8º andar. De repente faltou-lhe a coragem para tocar no botão, não vais recomeçar, Laura, pensou enquanto recuava para a porta da rua de novo. Acendeu um cigarro, o maço a acabar comprado de manhã na pastelaria perto do escritório. Sabia que nada seria igual a partir do momento em que decidisse a "loucura", como ele dissera, ou fazemos uma loucura ou perdemos a ilusão, não seguramos o passado e o futuro não vem. Pensava no sofá onde se sentaria a ler e a olhar para ele, com disfarce de olhos, enquanto ajeitava o cabelo apanhado com os ganchos sexy que comprara na Casa Batalha, pernas cruzadas com uma camisola creme muito larga e uns calções justos até ao joelho, outra vida, e ele? Naquele jeito irónico que um sorriso bonito definia bem, ele olharia para si e diria que nunca mais a deixaria apanhar o avião para Luanda, que lhe rasgava a papelada toda e a convidava a engomar e a fazer bolos de arroz para festas. Sonhara com aquilo, mas os homens são seres inquietos, que arranjam sempre forma de desdizer as grandes verdades apregoadas durante tanto tempo, dissera-lhe a Fernanda, a amiga fiel ao cinema, ao vinho tinto e ao Centro Cultural de Belém. E a pouco mais, gabava-se, escondendo a angústia de quem não sente nada por nada, nem por ninguém, nem por um gato, "olha Laura, não te esqueças que os homens mais velhos querem as mulheres novas para poderem fazer uma grande inveja aos amigos, enquanto vão destruindo lentamente a nossa vida, primeiro com amuos sorridentes, depois com amuos seguidos de ausências prolongadas, mais tarde com desdém, sempre com ciúmes que nós não percebemos, até ao dia em que a insistência quase nos obriga a enganá-los. Lembras-te daquele filme com a Cher e o Nicolas Cage, uma comédia de italianos nova-iorquinos, às tantas um personagem pergunta porque andam os homens atrás das mulheres mais novas: porque têm medo de morrer, e assim criam a ilusão de voltar ao princípio. Olha querida, não te deixes levar por esse prof bem vestido com empresa posta à conta da Universidade".
Laura acabou o cigarro e já lhe apetecia outro, enquanto tentava perceber a "vista deslumbrante" que a chuva densa não inspirava. Conhecera Afonso no ano anterior, vira-o a falar numa conferência na Universidade Nova, com gestos largos, a agarrar a sala toda, a voz segura, o sorriso cativante, a irreverência de quem não cresceu nem será um "senhor" nunca. Tinha levado um vestido verde, um pouco ousado, da Mango, pintara-se, pusera os óculos de executiva, e dispusera-se a ir ouvir as últimas teorias sobre as empresas de auditoria e a questão deontológica da co-existência daquela actividade com a consultoria. Afonso dissertava alegremente sobre um tema um tanto disparatado, mas na moda, com um título sugestivo: Os consultores são auditáveis na Net?. Enquanto ele falava, a imaginação começou a trabalhar e decidiu mandar-lhe um mail que ele pespegara no primeiro slide da apresentação. Depois a vaidade dele fez o resto, mail para cá, mail para lá, piadas, a ironia, as comparações, as insinuações, o convite.
O toque do telefone, das mensagens com citações de Neruda, de raiva das respostas que não vêm, de angústia pelo texto telegrafado, de letras engarrafadas nos circuitos, que depois saiam em catadupa a pôr os coração aos pulos. Da correria para o computador da ansiedade da escrita do correio, hoje não escreveu, porquê, estará doente, esqueceu-me, trocou-me, fez birra não gostou de alguma coisa... Fascinava-se há medida que mais tempo passava, alimentava-se sozinha daquela ideia dele, da imagem dele, das coisas que ele dizia que parecia mais ninguem ser capaz de dizer, e mais, deixava-se atrofiar pelas palavras simples, obscenas e amarelecidas de tanto ditas por tantos sempre, amor, querido, meu amor, beijos ternos, mas com ele parecia que era preciso inventar tudo outra vez, voltar atrás, amor não era amor, era amor com ele, beijos não eram beijos eram os beijos que ela imaginava com ele, querido, desejava, imaginava-o numa sala de decoração minimalista a ouvir jazz, Jarrett, Evans, com livros espalhados no chão, cabelo esbranquiçado, a mão apoiada no braço de um sofá vermelho. Vira-o uma vez e imaginava loucas cenas de sexo em hoteis pelo mundo inteiro, andar encostada ao ombro dele em ruas de Teerão, correr perigos no Suez, andar por onde andam os sem esperança, olhar os olhos dele em Tânger, procurar Paul Bowles, viajar em comboios cheios de suor, em avenidas de Bucareste, olhar gaivotas em Istambul, ir almoçar a Porto Brandão.

Since that moment of bliss

Nesse momento todos foram calmamente saindo da varanda, com um sorriso, como se fossem fantasmas que sempre estiveram habituados a flutuar por entre aqueles para quem as formas das coisas vão sendo diluidas em fluidos estranhos e sem corpo.

What a difference a day makes. And the difference is you




(Para a P., para sempre)

domingo, maio 23, 2004

The young martyr - Rachel Corrie


You who sleep for ever
In your cold shroud
Shall the disgrace fall on
Your holy misfortune

Which sentences for its crime
Your suicided spirit
And puts on its face
An accusing appearance



Paul Delaroche - La jeune martyre


(Rachel Corrie morreu esmagada por um bulldozer do Exercito Israelita, em Rafah, Faixa de Gaza, 16 de Março)

Heads will roll


Lord, into thy hands I commend my spirit - said the nine day Queen



(Paul Delaroche, 1797-1856 - The execution of Lady Jane Grey]

sábado, maio 22, 2004

Congresso do PSD


Dos vários temas quentes abordados pelos congressistas, fica aqui um contributo para um dos quentes e sem dúvida abordáveis, o discurso da tanga ou das tangas:






A extraordinária moda do triângulo da tanga vem sendo revelada em público, e é preciso andar o país muito distraido para não ver as consequências apocalípticas que terá o aumento do défice entre o tecido interior e o exterior.

A manuela ferreira leite não quis comentar, apenas afirmando que nunca se baixa para apanhar nada.

Mas eu digo-vos que cada vez mais as prateleiras das lojas estão a cair em desuso. Está tudo espalhado no chão.

Mas o PSD está atento.

Easy Jazz: young & vets



Com este MICHEL BUBLÉ passam-se horas agradáveis no trânsito de Lisboa;é como beber um champagne antes de um jantar. Porque canta muitas coisas à la Sinatra, como "the way you look tonight"

(se eu fosse capaz de cantar dedicava-a a L.)




Com JAMIE CULLUM o tom é mais jazzy-pop (seja lá o que isto fôr...)

ouvem-se, entre outras coisas agradáveis, clássicos como "blame it on my youth" e "what a difference a day made"




A primeira vet é TIERNEY SUTTON, uma verdadeira jazz singer, adorável disco, Dancing in the Dark (a foto acima é de outro que recomendo também, Something Cool) , tem por exemplo "last night when we were young" e é um tributo a Sinatra.




Desta vet (DIANA KRALL) já toda gente disse tudo. Excepto o sortudo do Costello que casou com ela e fez o melhor dos últimos discos dela: "the girl in the next room"


Raros são os dias (V)

Paris

19h. Lembrava-se disto enquanto olhava a Torre iluminada, e falava baixinho, achava um certo direito de falar para ela enquanto sofria de frio, por ela. Sempre com a gola levantada subiu as escadas e entrou num bar onde os empregados empertigados, lembrando que estamos em Paris, se atarefavam em mil coisas, menos olhar para três gatos pingados que beberricavam coisas desconhecidas para ele, talvez Campari, Pernod ? com água tonica. Pediu um merlot, ao copo, inibido por na sua terra o vinho ao copo ser sinónimo de tasca, e pareceu-lhe ver o mesmo personagem do café de há pouco, entre os três homens, sentados a três quartos a uma mesa. Até parecia o Augusto da boca de lábios grossos inacreditáveis, o garoupa! mas não podia ser, o Augusto devia estar aquela hora a treinar a sua fabulosa equipa de Andebol que conquistara o mundo: olivais e moscavide. Não voltou a olhar e pediu o terceiro merlot. Faltava ali o jazz, pensou quando o vinho começou a actuar, mas isso ficava para mais tarde. Olhou o relógio e pensou na oferta da Laura exactamente um ano antes, o bloco para escrever "notas queridas", algo que ela espicaçou escrevendo : pertence a Afonso e Laura. Escreveram os restaurantes a experimentar, os locais "obrigatórios" para ir depressa, os bares "lindos"de Lisboa, as frases escritas no meio do trabalho, adoro-te, pensas que escapas, ainda vão ouvir falar de nós, Cuba não cumpre a sua missão histórica sem nós, faço um cruzeiro contigo, mesmo enjoando, Brasil, caipirinhas miil, Praga missão impossível...
Sorriu ao pedir o quarto Merlot, meteu a mão ao bolso do sobretudo, para voltar ler o caderninho. Não estava ali onde jurava ter posto, procurou mais, nos bolsos todos, pensou, já foi bebida a dose suficiente para perder as coisas, se calhar não trouxe. Não encontrou o caderno. Acabou o merlot, pagou e saiu.

21h Caminhou até à ponte d'Alma, deixou-se ficar com a cabeça entusiasmada de ideias de contar historias a quem sobrevivera ao congresso, assolado por uma leve má consciencia de não ter lá posto os pés. Afinal eles é que deveriam contar-lhe as histórias de como um congresso sobre o empresariado africano era tão desfalecido de ideias e monótono. Mesmo os congressistas lusófonos, alinhados pelo tom pedante dos franceses, estavam pouco á vontade, ou não estariam de todo, como ele afinal. Achou-se capaz de ir ter com a troupe brasileira e deixar-se seguir na alegria deles.
Apanhou um taxi para o hotel e adormeceu antes de conseguir ler o recado deixado na recepção: Afonso, esperamos por si para jantar na Maison Asterix, mesmo ao lado do hotel. Assinava Marcelo Martins da Universidade de Luanda.




terça-feira, maio 18, 2004

Raros são os dias (IV)

Paris
18h Olhou durante muito tempo, viu partir muitos turistas, viu chegar muitos ainda, um circulo vicioso, uma pena que aquele ferro tinha de expiar, sempre invadido por gente, mas devolvendo altivo uma resposta nula aos porquês de todo o mundo querer Paris. A Noite acabou por apanhá-lo ali a tremer de frio, a estudar turistas, a engolir angustias sobre o tempo que não o deixaria ficar ali. Não subiu, como tinha pensado, achou pedante e ridículo ao mesmo tempo a ideia de não subir com medo que um avião viesse sabe-se lá donde rebentar com aquele ferro indiferente e com as tripas dos japoneses e dos outros, ele incluído. Mas foi desta forma vagamente snob que passou a ponte e foi até ao Trocadero, parecia-lhe agora mais equitativa aquela relação com a torre, estava mais acima, olhava-a de outro angulo, já iluminada e parecia-lhe que podia parecer falar sozinho, falando com a Torre. E ali encostado ao muro olhando a Torre desabafou com ela, em português, desafiando a sua vergonha imensa de passar por louco, ouvindo comentários que sabia não serem sobre si (mas, e se fossem?), a vergonha era essa. Como dançar numa discoteca. Nunca percebia bem porque havia quem dissesse: adoro dançar. Para ele, dançar significava apenas participar na festa dos outros para não parecer diferente dos outros, tinha vergonha de dançar, como se todos olhassem para ele e dissessem, dança mal, não dança?
Gostava de estar numa discoteca como quem está numa livraria: aí sentia que ninguém olhava para ninguém, quem dançava eram os livros e ele adorava mexer-lhes e cheirar as capas disfarçadamente, comprava muitos livros sem saber bem porquê, chamavam-no, riam-se como diabos (não queria pensar que era marketing bem feito, preferia pensar em amor á primeira apalpadela). As capas agora eram lindíssimas, com letras em relevo, cores nunca antes conjugadas, figuras estilizadas, nada daquele género letras a cavalo, poemas anunciados com letra miudinha e capas beijes, romances a prometer sexo. Lembrou-se de Harold Robbins, surripiado da mesa de cabeceira do pai, com alta roda, jet set e meninas a fazerem bicos a torto e a direito a velhos endinheirados e por milagre ainda musculados. Festas fantásticas com mulheres atraiçoando maridos no quarto de cima, de porta escancarada, com seguimento oscilando entre a teenager que surpreendia a mãe com o amigo do pai, ou com o pai idoso que surpreendia a filha com um amigo pouco menos idoso. Invariavelmente na piscina passava-se o negativo da foto com o homem da casa enrolado entre as saias de folhos de uma conviva, que oscilava entre a amante do pai (sim, o que surpreendia a mulher ), e a mulher do amigo que andava a desfalcá-lo na sociedade em comum. Certo o assassinio de alguem na piscina, depois de todos terem partido (que confusão!).Também Norman Mailer coabitava com Robbins com o veneno todo e a descrição da vida de sempre, isto é, sempre é diferente (mais tarde outro livro de Mailer de milhar de páginas haveria de contar-lhe muito sobre a América),livros de que haveria de saltar paginas.


__________________________________________________________________________________

quarta-feira, maio 12, 2004

Raros são os dias (III)


Paris

16h Com estas ideias não acabou a sanduíche, pagou, pegou no sobretudo azul e saiu, de novo com angustias desnecessárias, estava a estragar aquele tempo tão livre outra vez com a obsessiva história do filme! Raios!
Veio de novo para o frio, andou depressa no sentido da Torre, e passou o Sena na ponte Alexander, onde as estátuas de bronze douradas ainda reflectiam um pouco de sol que restava a Paris, sentiu-se outra vez melhor, apeteceu-lhe comprar bombons, mas não, seguiu decidido a passar pela Torre, olhá-la pela primeira vez depois de tudo o que acontecera com as outras Torres.

Parou, sentou-se num banco e olhou a figura imponente daquele ferro que se erguia desde há mais de um século, desafiante, intrusivo, indiferente aos japoneses, indiferente aos males do século, indiferente e pouco ralado com a princesa que viu morrer ali mesmo ao pé de si, indiferente aos barcos cheios de gente que olhava especada para si e para as margens do Sena, tudo á espera de captar uma coisa qualquer de Paris, um sinal dos românticos, um aceno de alguém subitamente aparecido e conhecido, um artista americano? Uma movie star de passagem por ali, um primo de Viana do Castelo?


segunda-feira, maio 10, 2004

Like my dress

o tecido do meu vestido é suave e ondula, o olhar vê o que parecia ter esquecido.

viu os meus cabelos longos e pareceu não ligar, como só ele sabe fazer.

a segunda vez que olhou pareceu-lhe que era um vestido antigo, como se ele o tivesse comprado, me tivesse oferecido e eu o tivesse guardado num guarda fato, e fosse agora tirá-lo para ele ver; só podia admitir vestir este vestido para o seu segundo olhar.

Quando olhei para ele soube que era um segundo olhar, e que nada poderia nunca afastar aquele dia em que o escolhi.

Guardei o vestido para ele. E tudo o que tenho.



domingo, maio 09, 2004

Raros são os dias (II)

Paris

15h. Arranjou maneira de sair airosamente do congresso (afinal, pensou, os congressos são para isso mesmo, para se sair airosamente, quando se fala, e igualmente quando não se fala, saindo dali). Puxou a gola do sobretudo azul para cima, como era hábito, parecia-lhe sempre melhor, um certo ar descontraído a juntar á roupa de boas marcas que não dispensava. Achava-se sempre melhor quando viajava, os espelhos pareciam-lhe mais generosos quando o reflectiam nos hotéis, e achava-se mais inspirado para escolher roupa e combinar camisas com calças, casacos. Comprava coisas por comprar quando viajava, deixava-se levar pela indiferença das horas, divertia-se com o ar apressado dos outros, com o desespero dos taxis, com o ar de trabalho dos outros, e queria que nunca mais acabasse aquele tempo. Podia o ar estar pesado, as figuras de cera na rua, que era um tempo suspenso, o tempo de escolher de entre os seus estados de espirito aquele mais apropriado à roupa, ao sítio.
Sentou-se num café, em plenos Campos Elisios, ali donde via bem o Arco, sentou-se no alpendre coberto que caracterizava os cafés de Paris. Olhou a lista, hesitou entre beber já um tinto francês, arriscar uma sonolência precoce e despertar a imaginação. Mas não, encomendou uma sanduíche de camembert e um capuccino, tirou o sobretudo e pousou-o na cadeira do lado. Inspirou fundo e sorriu, outra vez aquela segurança de quem sabe que as horas que faltam para deixar Paris lhe pertencem, e nada do que o espera em Lisboa tem a menor importância, nada nem ninguém tem a menor importância. Nem a Laura. Não queria pensar mas já estava o mal feito: a Laura outra vez.
A sanduíche teve uma certa amargura na primeira dentada, olhou á esquerda e pareceu-lhe ver uma cara já aparecida no Congresso, mas depois olhou de novo para a rua e viu três jovens vestidas de vermelho, muito pintadas, como se fossem do Moulin Rouge, pensou. Disparate, por que raio haviam de ser do MR, ali mesmo á frente dele, também não poderia sabê-lo, mas divertiu-se a pensar como seria a tarde daquelas três, talvez a fazer horas para o espectáculo da noite, com champanhe incluído, jantar e traje sem jeans (lera na véspera no site sobre Paris). Fugiram-lhe as ideias para o cinema, e o amor impossível das grandes tragédias clássicas, desde as queirosianas figuras até Diana e o desastre da ponte d'Alma, romantismo, pontes de Paris, candeeiros elegantes, tinha de sair dali depressa antes que a noite tapasse Paris. Passou para Bjork sem perceber logo, mas claro: o filme que faltava ver, comprado para ver com a Laura e há muitos meses a caminhar entre a estante e a pasta entre a estante e o saco de viagem entre a estante e a mala do portátil. Mas nunca o vira, depois de decidir muitas vezes acabar com a superstição e vê-lo sozinho, mas nunca conseguira. Tudo se passava assim como um contrato tácito com a Bjork, com o filme e com a sua própria tragédia: sabia que ela morria no fim, mas adiava essa morte uma e outra vez; poupava a vida ao personagem e em troca esta consolava-o com a perspectiva de um regresso da Laura. Se o filme não fosse visto com ela então ela estaria consigo e perguntar-lhe-ia de novo: ainda resistes a ver o filme?! Quando o vemos juntos então? Na próxima vez, com calma.

sábado, maio 08, 2004

If you'd be my bodyguard




..then I wouldn't be your long lost pal, anymore

Raros são os dias (I)

Passeio do Tejo

Silencio. Pode ser um ser que se aproxima em silencio, ou o silencio desta casa, onde as notas de chuva consolam meias plantas sobreviventes de um Verão. Um Verão com silêncios, toalhas sobre a mesa na varanda, sumos de laranja. Silêncio, como o medo. Vindo de um profundo vazio estou com medo. Cada ano passa menos gente por aqui, cada ano passa alguém que não quer passar para outro ano. Cada ano a sensação de paz com um pouco de tristeza. Agora é o medo.
Começou ali naquele ponto onde as gaivotas poisam de manhã muito cedo, onde por mais devagar que vá elas não me apoiam no cumprimento. Uma coisa estava lá á minha espera na balaustrada que tremia agitada pelo vento. Apoiei-me ao ferro, senti vento quente onde devia ser frio, e instalou-se o medo. Fechei os olhos para não ter medo, como se estivesse de novo na cama, tivesse de novo 7 anos e muito medo, e puxasse os lençóis para a cabeça, todo tapado e com frio e medo dos monstros ou coisas. Aqui não consegui. O medo chegou-se ali e tomou posse.

Antes que pudesse pensar porque tinha medo, antes mesmo que pudesse ver porque tinha medo, mesmo em qualquer ponto do tempo que podiam ser segundos, viu uma espécie de peixe sorridente que abria umas goelas gigantescas e sentiu de novo o calor subir pelas costas e tapá-lo de medo.

segunda-feira, maio 03, 2004

Laura

domingo, maio 02, 2004

What a difference a day made



De repente, o resumo de tudo é uma chave
A chave de uma porta que não abre
para o interior desabitado
no solo que inexiste, mas a chave existe

(Drummond de Andrade - Corpo)

Mãe

Mãe que há muito partiu e que me visita em sonhos, perguntando por mim

como estás? diz ela, por vezes aparecendo numa imagem muito jovem, outras num ser difuso e angustiado.

Deus por não existir "em meu nada recolhe minhas queixas"
Pela dor, "sofro á tua espreita inexistente Deus.
Pois se viveras existiria eu também deveras"


(excertos entre aspas da Oração do Ateu, de Miguel Unamuno)



Só Deus
(Francisco Metrass 1825-1861)
1856 - Museu do Chiado

Estatisticamente espectacular


Dir-se-ia um acaso ou uma coincidência, acusar-se-ia o tempo, a curva do rio, o vento forte que fez parar debaixo de um toldo. Dir-se-ia uma vontade inconsciente, vinda de onde ? para quê ?, ou talvez se falasse de um destino ou mesmo de algo escrito para ser assim.

E a partir desse momento que não tem nome, porque se convencionou chamar estas coisas todas ao que não se sabe ou sequer suspeita de causa próxima ou remota, a partir desse momento mais tarde vivido como recordação, percebe-se que mudámos a nossa vida para outra qualquer.

Porque se desistiu, ou porque se insistiu e persistiu, porque se abandonou ou porque se resolveu ficar, esse momento, talvez não mais importante que outros momentos, mas por alguma razão designado por "naquele momento", esse momento, dizia, passa a viver como um monumento na nossa mente. Visita-se por vezes, passeia-se por lá, está lá e ficou lá.

Foi um toque desgovernado numa tecla, foi um encontro casual na bilheteira de um cinema, foi porque algo nos chamou a atenção e fomos por ali e não por outro lado.

Os momentos, esses momentos, são assim.

Uma obra de estatística espectacular, mas como fazer para não deixar que os "outros momentos" passem ao lado ?


Destiny RisingElen Fainberg

domingo, abril 25, 2004

25 de Abril - a arte e o amor


Este 25 de Abril devia recordar-me coisas, pensadas ou vividas lá bem para trás.

O pasmo de há 30 anos, a alegria de há 30 anos, o poço de onde saíam almas que outras tentaram liquefazer
O despertar para as emoções de amores e desamores, paisagens e países, ódios e mortes em volta,
Despertares políticos, ansiedades, gritos de revolta, cabelos compridos, os Gentle Giant, os Génesis, escrita de angústia feita,
partidas de lágrimas presas, regressos encantados.


e depois tudo ! Tudo, sim, tudo o que se mete num bolso, antes de apanharmos um comboio num dia qualquer
para um lado qualquer, porque se deixou para trás qualquer coisa de profundo e se decidiu andar numa máquina do tempo.

Mas que fazer se me lembro apenas das tuas palavras dos últimos dias, e que dominam o meu dia de hoje
e me puseram outra vez eufórico e atabalhoado como o miudo do 25 de Abril que eu fui !

Fui lá ao outro lado do mundo muitas vezes, vi muitos lugares onde podia encontrar-te, mas quiseste afinal chamar por mim aqui, de
onde se vê sempre o rio, onde todos os dias o rio nos convida a partir pelo mar dentro.

Será sempre assim.



Menina dos Cravos, AMADEO DE SOUZA-CARDOSO
1913, Museu do Caramulo)



De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.
O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.

José Fanha, in "Breve tratado das coisas da arte e do amor"

sábado, abril 24, 2004

1974 - Até 25 de Abril (VI)



Antes de tudo mudar o Rossio esteve sem ninguém durante algumas horas.

Só os pombos admirados, porque os espíritos revoltados esperariam ainda algum tempo.

Passei eu apenas de mão dada com o meu pai.

Seriam alguns minutos ou meses antes do dia 25?