domingo, maio 09, 2004

Raros são os dias (II)

Paris

15h. Arranjou maneira de sair airosamente do congresso (afinal, pensou, os congressos são para isso mesmo, para se sair airosamente, quando se fala, e igualmente quando não se fala, saindo dali). Puxou a gola do sobretudo azul para cima, como era hábito, parecia-lhe sempre melhor, um certo ar descontraído a juntar á roupa de boas marcas que não dispensava. Achava-se sempre melhor quando viajava, os espelhos pareciam-lhe mais generosos quando o reflectiam nos hotéis, e achava-se mais inspirado para escolher roupa e combinar camisas com calças, casacos. Comprava coisas por comprar quando viajava, deixava-se levar pela indiferença das horas, divertia-se com o ar apressado dos outros, com o desespero dos taxis, com o ar de trabalho dos outros, e queria que nunca mais acabasse aquele tempo. Podia o ar estar pesado, as figuras de cera na rua, que era um tempo suspenso, o tempo de escolher de entre os seus estados de espirito aquele mais apropriado à roupa, ao sítio.
Sentou-se num café, em plenos Campos Elisios, ali donde via bem o Arco, sentou-se no alpendre coberto que caracterizava os cafés de Paris. Olhou a lista, hesitou entre beber já um tinto francês, arriscar uma sonolência precoce e despertar a imaginação. Mas não, encomendou uma sanduíche de camembert e um capuccino, tirou o sobretudo e pousou-o na cadeira do lado. Inspirou fundo e sorriu, outra vez aquela segurança de quem sabe que as horas que faltam para deixar Paris lhe pertencem, e nada do que o espera em Lisboa tem a menor importância, nada nem ninguém tem a menor importância. Nem a Laura. Não queria pensar mas já estava o mal feito: a Laura outra vez.
A sanduíche teve uma certa amargura na primeira dentada, olhou á esquerda e pareceu-lhe ver uma cara já aparecida no Congresso, mas depois olhou de novo para a rua e viu três jovens vestidas de vermelho, muito pintadas, como se fossem do Moulin Rouge, pensou. Disparate, por que raio haviam de ser do MR, ali mesmo á frente dele, também não poderia sabê-lo, mas divertiu-se a pensar como seria a tarde daquelas três, talvez a fazer horas para o espectáculo da noite, com champanhe incluído, jantar e traje sem jeans (lera na véspera no site sobre Paris). Fugiram-lhe as ideias para o cinema, e o amor impossível das grandes tragédias clássicas, desde as queirosianas figuras até Diana e o desastre da ponte d'Alma, romantismo, pontes de Paris, candeeiros elegantes, tinha de sair dali depressa antes que a noite tapasse Paris. Passou para Bjork sem perceber logo, mas claro: o filme que faltava ver, comprado para ver com a Laura e há muitos meses a caminhar entre a estante e a pasta entre a estante e o saco de viagem entre a estante e a mala do portátil. Mas nunca o vira, depois de decidir muitas vezes acabar com a superstição e vê-lo sozinho, mas nunca conseguira. Tudo se passava assim como um contrato tácito com a Bjork, com o filme e com a sua própria tragédia: sabia que ela morria no fim, mas adiava essa morte uma e outra vez; poupava a vida ao personagem e em troca esta consolava-o com a perspectiva de um regresso da Laura. Se o filme não fosse visto com ela então ela estaria consigo e perguntar-lhe-ia de novo: ainda resistes a ver o filme?! Quando o vemos juntos então? Na próxima vez, com calma.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

vyhbjtfggjifitvgfrd

1:53 da tarde  

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