terça-feira, maio 18, 2004

Raros são os dias (IV)

Paris
18h Olhou durante muito tempo, viu partir muitos turistas, viu chegar muitos ainda, um circulo vicioso, uma pena que aquele ferro tinha de expiar, sempre invadido por gente, mas devolvendo altivo uma resposta nula aos porquês de todo o mundo querer Paris. A Noite acabou por apanhá-lo ali a tremer de frio, a estudar turistas, a engolir angustias sobre o tempo que não o deixaria ficar ali. Não subiu, como tinha pensado, achou pedante e ridículo ao mesmo tempo a ideia de não subir com medo que um avião viesse sabe-se lá donde rebentar com aquele ferro indiferente e com as tripas dos japoneses e dos outros, ele incluído. Mas foi desta forma vagamente snob que passou a ponte e foi até ao Trocadero, parecia-lhe agora mais equitativa aquela relação com a torre, estava mais acima, olhava-a de outro angulo, já iluminada e parecia-lhe que podia parecer falar sozinho, falando com a Torre. E ali encostado ao muro olhando a Torre desabafou com ela, em português, desafiando a sua vergonha imensa de passar por louco, ouvindo comentários que sabia não serem sobre si (mas, e se fossem?), a vergonha era essa. Como dançar numa discoteca. Nunca percebia bem porque havia quem dissesse: adoro dançar. Para ele, dançar significava apenas participar na festa dos outros para não parecer diferente dos outros, tinha vergonha de dançar, como se todos olhassem para ele e dissessem, dança mal, não dança?
Gostava de estar numa discoteca como quem está numa livraria: aí sentia que ninguém olhava para ninguém, quem dançava eram os livros e ele adorava mexer-lhes e cheirar as capas disfarçadamente, comprava muitos livros sem saber bem porquê, chamavam-no, riam-se como diabos (não queria pensar que era marketing bem feito, preferia pensar em amor á primeira apalpadela). As capas agora eram lindíssimas, com letras em relevo, cores nunca antes conjugadas, figuras estilizadas, nada daquele género letras a cavalo, poemas anunciados com letra miudinha e capas beijes, romances a prometer sexo. Lembrou-se de Harold Robbins, surripiado da mesa de cabeceira do pai, com alta roda, jet set e meninas a fazerem bicos a torto e a direito a velhos endinheirados e por milagre ainda musculados. Festas fantásticas com mulheres atraiçoando maridos no quarto de cima, de porta escancarada, com seguimento oscilando entre a teenager que surpreendia a mãe com o amigo do pai, ou com o pai idoso que surpreendia a filha com um amigo pouco menos idoso. Invariavelmente na piscina passava-se o negativo da foto com o homem da casa enrolado entre as saias de folhos de uma conviva, que oscilava entre a amante do pai (sim, o que surpreendia a mulher ), e a mulher do amigo que andava a desfalcá-lo na sociedade em comum. Certo o assassinio de alguem na piscina, depois de todos terem partido (que confusão!).Também Norman Mailer coabitava com Robbins com o veneno todo e a descrição da vida de sempre, isto é, sempre é diferente (mais tarde outro livro de Mailer de milhar de páginas haveria de contar-lhe muito sobre a América),livros de que haveria de saltar paginas.


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