terça-feira, maio 25, 2004

Raros são os dias (VI)

Lisboa




16h. Olhou de novo a lista. Tinha a certeza que estava tudo, mas parecia que algo devia estar e não estava. Não, eram coisas da superstição, dia de chuva, dia de cabelos difíceis, dia de correr tudo mal, dia de ver o espelho de soslaio, para não ficar mais acesa a luta com a imagem. Levantou.se para sair nas laranjeiras, com o metro quase vazio, seria mesmo ali? O anúncio dizia Metro: Laranjeiras, aluga-se mobilado, T2, vista deslumbrante sobre Monsanto. Seguiu as indicações dadas pela imobiliária e deu com a porta, trinco avariado, começamos mal, mas seguiu para o elevador, 8º andar. De repente faltou-lhe a coragem para tocar no botão, não vais recomeçar, Laura, pensou enquanto recuava para a porta da rua de novo. Acendeu um cigarro, o maço a acabar comprado de manhã na pastelaria perto do escritório. Sabia que nada seria igual a partir do momento em que decidisse a "loucura", como ele dissera, ou fazemos uma loucura ou perdemos a ilusão, não seguramos o passado e o futuro não vem. Pensava no sofá onde se sentaria a ler e a olhar para ele, com disfarce de olhos, enquanto ajeitava o cabelo apanhado com os ganchos sexy que comprara na Casa Batalha, pernas cruzadas com uma camisola creme muito larga e uns calções justos até ao joelho, outra vida, e ele? Naquele jeito irónico que um sorriso bonito definia bem, ele olharia para si e diria que nunca mais a deixaria apanhar o avião para Luanda, que lhe rasgava a papelada toda e a convidava a engomar e a fazer bolos de arroz para festas. Sonhara com aquilo, mas os homens são seres inquietos, que arranjam sempre forma de desdizer as grandes verdades apregoadas durante tanto tempo, dissera-lhe a Fernanda, a amiga fiel ao cinema, ao vinho tinto e ao Centro Cultural de Belém. E a pouco mais, gabava-se, escondendo a angústia de quem não sente nada por nada, nem por ninguém, nem por um gato, "olha Laura, não te esqueças que os homens mais velhos querem as mulheres novas para poderem fazer uma grande inveja aos amigos, enquanto vão destruindo lentamente a nossa vida, primeiro com amuos sorridentes, depois com amuos seguidos de ausências prolongadas, mais tarde com desdém, sempre com ciúmes que nós não percebemos, até ao dia em que a insistência quase nos obriga a enganá-los. Lembras-te daquele filme com a Cher e o Nicolas Cage, uma comédia de italianos nova-iorquinos, às tantas um personagem pergunta porque andam os homens atrás das mulheres mais novas: porque têm medo de morrer, e assim criam a ilusão de voltar ao princípio. Olha querida, não te deixes levar por esse prof bem vestido com empresa posta à conta da Universidade".
Laura acabou o cigarro e já lhe apetecia outro, enquanto tentava perceber a "vista deslumbrante" que a chuva densa não inspirava. Conhecera Afonso no ano anterior, vira-o a falar numa conferência na Universidade Nova, com gestos largos, a agarrar a sala toda, a voz segura, o sorriso cativante, a irreverência de quem não cresceu nem será um "senhor" nunca. Tinha levado um vestido verde, um pouco ousado, da Mango, pintara-se, pusera os óculos de executiva, e dispusera-se a ir ouvir as últimas teorias sobre as empresas de auditoria e a questão deontológica da co-existência daquela actividade com a consultoria. Afonso dissertava alegremente sobre um tema um tanto disparatado, mas na moda, com um título sugestivo: Os consultores são auditáveis na Net?. Enquanto ele falava, a imaginação começou a trabalhar e decidiu mandar-lhe um mail que ele pespegara no primeiro slide da apresentação. Depois a vaidade dele fez o resto, mail para cá, mail para lá, piadas, a ironia, as comparações, as insinuações, o convite.
O toque do telefone, das mensagens com citações de Neruda, de raiva das respostas que não vêm, de angústia pelo texto telegrafado, de letras engarrafadas nos circuitos, que depois saiam em catadupa a pôr os coração aos pulos. Da correria para o computador da ansiedade da escrita do correio, hoje não escreveu, porquê, estará doente, esqueceu-me, trocou-me, fez birra não gostou de alguma coisa... Fascinava-se há medida que mais tempo passava, alimentava-se sozinha daquela ideia dele, da imagem dele, das coisas que ele dizia que parecia mais ninguem ser capaz de dizer, e mais, deixava-se atrofiar pelas palavras simples, obscenas e amarelecidas de tanto ditas por tantos sempre, amor, querido, meu amor, beijos ternos, mas com ele parecia que era preciso inventar tudo outra vez, voltar atrás, amor não era amor, era amor com ele, beijos não eram beijos eram os beijos que ela imaginava com ele, querido, desejava, imaginava-o numa sala de decoração minimalista a ouvir jazz, Jarrett, Evans, com livros espalhados no chão, cabelo esbranquiçado, a mão apoiada no braço de um sofá vermelho. Vira-o uma vez e imaginava loucas cenas de sexo em hoteis pelo mundo inteiro, andar encostada ao ombro dele em ruas de Teerão, correr perigos no Suez, andar por onde andam os sem esperança, olhar os olhos dele em Tânger, procurar Paul Bowles, viajar em comboios cheios de suor, em avenidas de Bucareste, olhar gaivotas em Istambul, ir almoçar a Porto Brandão.