sábado, maio 22, 2004

Raros são os dias (V)

Paris

19h. Lembrava-se disto enquanto olhava a Torre iluminada, e falava baixinho, achava um certo direito de falar para ela enquanto sofria de frio, por ela. Sempre com a gola levantada subiu as escadas e entrou num bar onde os empregados empertigados, lembrando que estamos em Paris, se atarefavam em mil coisas, menos olhar para três gatos pingados que beberricavam coisas desconhecidas para ele, talvez Campari, Pernod ? com água tonica. Pediu um merlot, ao copo, inibido por na sua terra o vinho ao copo ser sinónimo de tasca, e pareceu-lhe ver o mesmo personagem do café de há pouco, entre os três homens, sentados a três quartos a uma mesa. Até parecia o Augusto da boca de lábios grossos inacreditáveis, o garoupa! mas não podia ser, o Augusto devia estar aquela hora a treinar a sua fabulosa equipa de Andebol que conquistara o mundo: olivais e moscavide. Não voltou a olhar e pediu o terceiro merlot. Faltava ali o jazz, pensou quando o vinho começou a actuar, mas isso ficava para mais tarde. Olhou o relógio e pensou na oferta da Laura exactamente um ano antes, o bloco para escrever "notas queridas", algo que ela espicaçou escrevendo : pertence a Afonso e Laura. Escreveram os restaurantes a experimentar, os locais "obrigatórios" para ir depressa, os bares "lindos"de Lisboa, as frases escritas no meio do trabalho, adoro-te, pensas que escapas, ainda vão ouvir falar de nós, Cuba não cumpre a sua missão histórica sem nós, faço um cruzeiro contigo, mesmo enjoando, Brasil, caipirinhas miil, Praga missão impossível...
Sorriu ao pedir o quarto Merlot, meteu a mão ao bolso do sobretudo, para voltar ler o caderninho. Não estava ali onde jurava ter posto, procurou mais, nos bolsos todos, pensou, já foi bebida a dose suficiente para perder as coisas, se calhar não trouxe. Não encontrou o caderno. Acabou o merlot, pagou e saiu.

21h Caminhou até à ponte d'Alma, deixou-se ficar com a cabeça entusiasmada de ideias de contar historias a quem sobrevivera ao congresso, assolado por uma leve má consciencia de não ter lá posto os pés. Afinal eles é que deveriam contar-lhe as histórias de como um congresso sobre o empresariado africano era tão desfalecido de ideias e monótono. Mesmo os congressistas lusófonos, alinhados pelo tom pedante dos franceses, estavam pouco á vontade, ou não estariam de todo, como ele afinal. Achou-se capaz de ir ter com a troupe brasileira e deixar-se seguir na alegria deles.
Apanhou um taxi para o hotel e adormeceu antes de conseguir ler o recado deixado na recepção: Afonso, esperamos por si para jantar na Maison Asterix, mesmo ao lado do hotel. Assinava Marcelo Martins da Universidade de Luanda.