segunda-feira, maio 31, 2004

Raros são os dias (VIII)

Lisboa - Luanda



Marcelo, sabia agora, não o amava, não sentira a emoção de querer alguém, como se a voz dele não tocasse a imaginação, como se os dedos dele não tocassem os seus cabelos negros, como se o seu corpo não a fizesse arrepiar e estremecer e desejar sempre mais, como se fosse impossível separar-se de um ser a quem se deu a intimidade das lágrimas misturadas com a raiva do acaso imperfeito, como se fosse a única ponte entre o desespero e os dias de sol, passados numa esplanada do Castelo a rever papéis com Afonso quase, quase a chegar.
Arrepiou-a uma rajada que lhe apagou o cigarro, Marcelo que faria se soubesse, não merecia, dizia sempre a Afonso, não conseguia explicar a um o que não sabia como dizer a outro. Passava os dias em Lisboa com Afonso, insegura na segurança da cidade, e depois voltava para a insegurança de Luanda, segura no braço de Marcelo, na casa da Maianga.
Não conseguia subir o elevador, olhava a chuva e a porta, surpresa por tanto hesitar, ela, um vendaval no escritório, os gestos firmes de entrar no 12 º andar com barulho de roupa e mala, com sorrisos de batôn vermelho, com vestidos de cores fulgurantes, com a certeza de ninguém estar melhor com a vida, com as opiniões atiradas para o ar, com verdades impossíveis de escapar, com os olhares tímidos de quem gostava de contradizer mas não podia, a resistência do olhar casava com a voz e ditava em vez de recomendar, ficara-lhe aquele jeito de certezas disparadas do nada, como se estivesse em palco, uma mulher fatal num trio de jazz, com baterias resplandecentes, piano engraxado onde a cantora se penteava, se deitava num vestido e sapatos vermelhos, um baixo onde um negro sorridente com cap se encostava, e ela chorava com a voz, ou gritava : body an soul !
Menina, eu perco-me consigo, assim nem consigo conduzir direito, depois conta-me tudo. Era assim, quando chegava a Luanda, seria assim semanas depois, quando sobrevoava Lisboa na madrugada, e mesmo com os olhos cansados de dormir aos bocadinhos, entre olhares perdidos nas estrelas focados através da janela oval, quando os outros cobertos de mantas se apagavam, e ela sempre viva, pensava no prazer da chegada, na incerteza de qual era a sua terra, enquanto o ruido de bandejas metálicas começava, o cheiro a omelete de avião, as meias dos outros em lugares de sapatos, como gatos malcheirosos que atravessavam os corredores, cambaleantes e de olhares papudos e cabelos esticados e hálito repulsivo.
Á procura dos anjos no meio das estrelas em cada viagem, entre os papéis e as leituras recomendadas, entre as revistas da "especialidade" e os jornais de economia, os que partiam a realidade aos bocadinhos, entre ler o romance de Lidia Jorge e a cronica de viagens de Chatwin, pick yourself up, dust yourself off, Krall no walkman, a lembrar-lhe a inspiração, and start all over again.
Levantava-se e media o avião, imaginava a sua forma de canudo arredondado a velocidades de um mundo que não entendia, e nada levava a sensação de voltar à outra vida, entre os continentes, entre os sabores, um previlégio que ninguém lhe tirava, a sua existência apaixonada, entre os dramas do prazer ausente e a felicidade de olhar a sua vida de longe, de muito longe, de se deixar envolver pela bruma da madrugada de Lisboa, num taxi, ver Lisboa antes da massa de gases tóxicos disfarçados de pessoas que a invadia todas as manhãs, antes de as vidas pararem em carros e autocarros, antes mesmo de um calor ténue e a luz branca absorverem as ideias de Lisboa. The night they called it a day.
Da Portela ao Campo Pequeno, do 4 de Fevereiro à Maianga, as viagens pequenas que eram o epilogo de um conto sempre triste e emocionante ao mesmo tempo, de ausência permanente transformada, em 7 horas de estrelas desejadas que ficavam para trás, como já tinham sido há muitos muitos milénios.