sexta-feira, maio 28, 2004

Raros são os dias (VII)

Lisboa


Durou dois meses e tal esta expectativa de alma, uma viagem a Luanda não esmoreceu, nem quando Marcelo a olhou como sempre fazia com o sorriso mais bonito do mundo, como se soubesse pôr a alma dela outra vez no lugar certo. Nem mesmo quando pensou que a casa da Maianga era o melhor lugar para respirar, para tirar da pilha dos livros que têm de ser lidos, um, aquele que fala deles, aquele que faz tudo lembrar quando parece tudo esquecido, aquele lugar incompreensível em que a alma se ri para as palavras que dizem para dentro que não há caminhos por ali. Olhou para Marcelo no aeroporto, para o sorriso, sentiu-se bem, aconchegou-se, pensou que aquele era o homem dela e até era capaz de lhe dizer tudo, de lhe dizer que a fantasia dela ia aos poucos destruindo o que eles eram, ia comendo devagarinho, como faz o tempo ao corpo das pessoas, mas que não tinha importância, era uma alma ausente aquela para onde ela olhava, ele era o corpo. Dez vezes olhou Marcelo, dez vezes saíram palavras ocas onde deveriam sair as outras, agarradas desesperadamente à alma, não conseguia libertá-las, e continuava pela noite, acordada, suada, desiludida pela bactéria que comia aquela vida, a minha vida.
Muitas horas e dias de conversa depois, ele estava à porta do Hotel onde ela costumava ficar, depois de uma hora a mudar vestidos e blusas, arrependida mil vezes do perfume, muito doce, ele não ia gostar, devia ter posto outro mais neutro, como se fosse Inverno rigoroso, como se caísse neve naquele primeiro encontro, como se fosse um encontro no extremo de um pontão com um farol imponente, mas não, era Novembro, fazia sol, um mês improvável para romances inventados.
Era tarde, ele chegaria daí a nada, não era preciso voltar atrás, saído não do nevoeiro de Novembro, mas caminhando pela avenida abaixo, com um casaco azul pela mão, trazendo a bactéria que ela temia. Sabia que a fotografia era para o tempo amarelecer, mas quem ousa pensar isso no momento em que tem a certeza de que vai ser capaz de coisas impossíveis, para quem tem a certeza que a imaginação dos outros, no cinema, nas telas, é aventura de almas livres.
Agora, ela estava ali, á porta de um prédio recente, nas Laranjeiras, pronta a alugá-lo, para eles. Pelos meses rápidos ficaram as viagens a Luanda, o Fonseca à espera na saída do controlo, Marcelo cá fora sempre sorridente, o mulato mais bonito de Luanda, como ela chamara quando o beijou pela primeira vez, e conseguiu fechar os olhos que não queria tirar do verde água dos dele; as águas da baía de Luanda protegeram muitas vezes a ansiedade dos encontros, o piano de Jarrett também, last night when we were young, o amor ao jazz, as diferenças do jazz. Os fins de tarde de Luanda vieram até ali, passou a mão de novo pelo cabelo, sentiu a tristeza de quem não sabe como transformar os sentidos em actos quotidianos, a culpa, sempre a culpa dos actos que falham os sentimentos. Eu gosto mas não vou, eu quero mas não posso, eu faria mas hoje não, eu farei se amanhã, eu quero que sejas assim, eu quero ter-te hoje, mas não estás, eu repito este gesto contigo, mas agora não podes.