Raros são os dias (XVI)
Luanda
Agora olhava pela janela do 7º andar, muito tempo depois de tudo e muito tempo antes de poder esquecer a angustia de manhã, a angustia dos locais, todos os que eram reconheciveis, mas também todos os que eram novos e que ela não poderia sentir. Viu a manhã de Luanda, com pouco sol, uma névoa insistente, um cheiro do café, sentou-se na cadeira de verga a olhar mais um pacote onde espreitavam as pontas de uns dentes de marfim, que os habitantes temporários daquela casa (a casa de trânsito, como lhe chamava a empresa que a alugara) compravam furiosamente sempre que se deslocavam a Luanda, a par de bijuteria e artesanato; tudo barato, diziam, com a ideia de decorarem a casa de férias com máscaras indigenas, inundarem a mulher e amantes com anéis de marfim, de jade, cinzeiros de pau-santo para oferecer no Natal, gastavam dólares que o Fonseca, motorista e guia dos locais de compra clandestinos, nunca ganharia em anos de trabalho. Olhou a rua da Missão, demasiado perto de onde ela fora assaltada, demasiado perto da memória que o levava para longe dali, para a praia das Palmeiras, ondas gigantes e quentes, a praia despovoada, um pescador de lagostas com uma tanga desbotada a dizer Arena, e ela, com um fato de banho preto, subido nas ancas que a transformava numa nova deusa de pele escura, mistura de séculos de portugueses com angolanos que os unia de uma forma ignorada pelos perplexos relatores da guerra e da ante-guerra e do pós-guerra, e que alguns escritores angolanos e mesmo brasileiros cantavam e acentuavam, sem eco em Portugal. Olhava a Rua da Missão, mas via o vermelho da terra e os imbondeiros descarnados de braços levantados com pedaços de fruto negro pendurado, a saudade de voltar a casa no Domingo, depois da praia vestir a camisola branca de alças e os calções de caqui e as chinelas de cabedal escuro, o cabelo penteado para trás, o bigodinho recente, depois de um banho no chuveiro do pátio com os outros e as conversas com o pai, sentados nos bancos de madeira enquanto a mãe assava frango, com um avental de flores sobre um vestido beije, cabelo apanhado, um pouco eriçado, como o do pai, como o seu, como os seus olhos verdes que despertavam a malícia das mulatas do pátio, herói de dois golos marcados ao Pita, guarda redes, na eliminatória memorável contra o Petro Atlético, final de juvenis, arbitrada pelo namorado de Laura, mais velho, um gajo meio portugûes, manda chuva da federação, coisas do colonialismo.
Não voltara a entrar na casa da Maianga, não voltara a transpor o portão de ferro. Da janela do 7º andar conseguia ver a Maianga, mas não a casa onde um dia entrara com ela, entre promessas de arranjos e obras nunca feitas, portadas brancas entre buganvílias, pedra até à porta principal, uma sala em baixo com uma estante do pai com gira-discos onde se tocava Sinatra a 78 rotações, dançara com ela the summer wind. Dois quartos em cima uma escada simples sem corrimão, o estilo colonial português de sessenta.
Passara pelo Sahara tantas vezes, tantas vezes sonhara conhecer o deserto sobrevoado, a savana, os rios, as travessias de séculos entre África e Europa, olhar com emoção Sagres e o Cabo, e os regressos para a terra vermelha. Parecia-lhe agora tudo impossível, focou o olhar no vidro, encostou a cabeça e deixou-se levar pela angústia outra vez, imobilizou-se, não era preciso parar o tempo agora, devia acelerá-lo, voar dali para outro ser, tomar outra forma, apagar pedaços do cérebro, trocar de alma, voltar a Lisboa e misturar-se no metro a ouvir os outros, passar a alma angustiada para um desconhecido qualquer, agarrar outras emoções, rir outra vez, esquecer-se dos livros e da musica, ter lido outros livros, ter dançado outra música, trocar de passado, encomendar a alma ao Diabo, um pacto de servidão com o anti-cristo. Desejos de ruptura e focou sem querer o soldado que fazia a ronda com a arma ao ombro. Quem poderia ter desfeito tudo com um tiro, poderia ele roubar uma A47, desejava-o agora, infiltrar-se nos muceques, pagar a quem fosse preciso para saber, vingar-se de quem lhe roubara tudo. Nunca o faria, sabia-se desajeitado com armas e raquetes de ténis, poucas vezes andara ao murro. Saiu desesperado, nem o diabo o salvaria.
Agora olhava pela janela do 7º andar, muito tempo depois de tudo e muito tempo antes de poder esquecer a angustia de manhã, a angustia dos locais, todos os que eram reconheciveis, mas também todos os que eram novos e que ela não poderia sentir. Viu a manhã de Luanda, com pouco sol, uma névoa insistente, um cheiro do café, sentou-se na cadeira de verga a olhar mais um pacote onde espreitavam as pontas de uns dentes de marfim, que os habitantes temporários daquela casa (a casa de trânsito, como lhe chamava a empresa que a alugara) compravam furiosamente sempre que se deslocavam a Luanda, a par de bijuteria e artesanato; tudo barato, diziam, com a ideia de decorarem a casa de férias com máscaras indigenas, inundarem a mulher e amantes com anéis de marfim, de jade, cinzeiros de pau-santo para oferecer no Natal, gastavam dólares que o Fonseca, motorista e guia dos locais de compra clandestinos, nunca ganharia em anos de trabalho. Olhou a rua da Missão, demasiado perto de onde ela fora assaltada, demasiado perto da memória que o levava para longe dali, para a praia das Palmeiras, ondas gigantes e quentes, a praia despovoada, um pescador de lagostas com uma tanga desbotada a dizer Arena, e ela, com um fato de banho preto, subido nas ancas que a transformava numa nova deusa de pele escura, mistura de séculos de portugueses com angolanos que os unia de uma forma ignorada pelos perplexos relatores da guerra e da ante-guerra e do pós-guerra, e que alguns escritores angolanos e mesmo brasileiros cantavam e acentuavam, sem eco em Portugal. Olhava a Rua da Missão, mas via o vermelho da terra e os imbondeiros descarnados de braços levantados com pedaços de fruto negro pendurado, a saudade de voltar a casa no Domingo, depois da praia vestir a camisola branca de alças e os calções de caqui e as chinelas de cabedal escuro, o cabelo penteado para trás, o bigodinho recente, depois de um banho no chuveiro do pátio com os outros e as conversas com o pai, sentados nos bancos de madeira enquanto a mãe assava frango, com um avental de flores sobre um vestido beije, cabelo apanhado, um pouco eriçado, como o do pai, como o seu, como os seus olhos verdes que despertavam a malícia das mulatas do pátio, herói de dois golos marcados ao Pita, guarda redes, na eliminatória memorável contra o Petro Atlético, final de juvenis, arbitrada pelo namorado de Laura, mais velho, um gajo meio portugûes, manda chuva da federação, coisas do colonialismo.
Não voltara a entrar na casa da Maianga, não voltara a transpor o portão de ferro. Da janela do 7º andar conseguia ver a Maianga, mas não a casa onde um dia entrara com ela, entre promessas de arranjos e obras nunca feitas, portadas brancas entre buganvílias, pedra até à porta principal, uma sala em baixo com uma estante do pai com gira-discos onde se tocava Sinatra a 78 rotações, dançara com ela the summer wind. Dois quartos em cima uma escada simples sem corrimão, o estilo colonial português de sessenta.
Passara pelo Sahara tantas vezes, tantas vezes sonhara conhecer o deserto sobrevoado, a savana, os rios, as travessias de séculos entre África e Europa, olhar com emoção Sagres e o Cabo, e os regressos para a terra vermelha. Parecia-lhe agora tudo impossível, focou o olhar no vidro, encostou a cabeça e deixou-se levar pela angústia outra vez, imobilizou-se, não era preciso parar o tempo agora, devia acelerá-lo, voar dali para outro ser, tomar outra forma, apagar pedaços do cérebro, trocar de alma, voltar a Lisboa e misturar-se no metro a ouvir os outros, passar a alma angustiada para um desconhecido qualquer, agarrar outras emoções, rir outra vez, esquecer-se dos livros e da musica, ter lido outros livros, ter dançado outra música, trocar de passado, encomendar a alma ao Diabo, um pacto de servidão com o anti-cristo. Desejos de ruptura e focou sem querer o soldado que fazia a ronda com a arma ao ombro. Quem poderia ter desfeito tudo com um tiro, poderia ele roubar uma A47, desejava-o agora, infiltrar-se nos muceques, pagar a quem fosse preciso para saber, vingar-se de quem lhe roubara tudo. Nunca o faria, sabia-se desajeitado com armas e raquetes de ténis, poucas vezes andara ao murro. Saiu desesperado, nem o diabo o salvaria.
1 Comments:
You have an outstanding good and well structured site. I enjoyed browsing through it forex trading credit cards dvd windows media player 649 canada lotto number
Enviar um comentário
<< Home