quinta-feira, junho 24, 2004

Raros são os dias (XIV)

Luanda


Recusou o convite para passar para o banco do lado e tentou afastar o medo, com um grito, como daquela vez em que o professor de Ciências a esperou no pátio da escola e convidou para explicar em sua casa porque razão o sumo não cai das palhinhas quando seguramos uma das pontas com um dedo. Viu os olhos amarelos e o esgar trémulo de um lábio, como estava a ver agora, viu a mão do professor estender-se para o seu cabelo, como aquela mão se estendeu, sentiu o cheiro de um suor que se mostrava em gotas pequenas na fronte do professor, como sentia agora, cada vez mais próximo de si, tinha de ir a Chicago, pensou. A resposta estava lá, tentou pensar depressa numa solução, não ia entregar o carro daquela maneira estúpida, era preciso falar, explicar, talvez não devesse ter gritado, talvez não devesse ter pensado nos olhos verdes de Marcelo antes, com a face encostada a si, e desejar que fosse ele, e não aquele estranho, mesmo antes de olhar o pai, de sentir a terra vermelha da sua terra gritar de dor pelo sangue de tantos amigos, de uma lágrima inexplicável ter saltado e misturado com o suor daquele rosto agora colado ao seu cabelo e um barulho definitivo ter rebentado o timpano esquerdo, deixando que o frio se aproveitasse da sua fraqueza e tomasse o lugar que só deveria ser seu daqui por muitos anos.
Absolutamente impossível imaginar que o vermelho se alastrasse pelos ombros, como se o baton de repente puxasse pelos lábios e sugasse todo o sangue, de repente a boca ficasse muito aberta e espantada num sorriso estranho de máscara, e o sangue iluminasse os olhos já indiferentes á vida, como se o sangue fluisse mesmo do coração, e chamasse por ele. "Marcelo, se eu morrer levas-me para ao pé do meu pai, está bem?", dissera-lhe um dia quando voltavam do alto do monte que domina Luanda, e onde o cemitério é calmo como em mais nenhum lugar. Como em todos os lugares do mundo onde ninguem fala, onde há pedras e flores, e arvores longas que parecem tentar sossegar quem lá vai e olhar para o lugar prometido, mesmo ali onde se perde a esperança para sempre. O lugar dos sinos tristes e compassados que anunciam entradas definitivas num mundo, outro mundo, sem nada para as almas, sem nada para além dos bichos invisíveis, onde as árvores longas cobrem de tristeza quem ali vai à procura de um encontro consigo, a pretexto da memória de outros lugares. O lugar onde Deus não está.


1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

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6:25 da tarde  

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