quarta-feira, junho 16, 2004

Raros são os dias (XIII)

Luanda

Nessa manhã saira de casa com uma pasta, condizendo com a sua fatiota saia e casaco vermelha e cinzenta, uma pasta preta com as iniciais TM&A, apenas um café e torrada sem manteiga, iogurte bulgaro, algumas horas depois de um breve sono agitado de números e fantasmas de dossiers debaixo do braço, a agitação de uma descoberta fantástica, mais números, uma viagem a Chicago em perspectiva. Laura investigava, a auditoria que conduzia fascinava-a e punha Marcelo numa espécie de suplente, o que o desesperava e fazia imaginar traições e abandonos que ela desmentia com um sorriso estranho que ele sempre adorara e respeitara. Despediu-se á pressa, bateu a porta, enquanto ele vagueava pela casa em pijama de seda azul, com uma lapela onde se insinuavam dragões chineses e porticos vermelhos: a porta do khmer vermelho, chamara-lhe ela, a sorrir, sempre com os olhos em alerta, não fosse alguma borboleta escapar-lhe do angulo de visão e esmagar-se contra o espelho. Impossível viver mais depressa, pensava Marcelo enquanto olhava pelo portão de ferro, cheio de um desejo por ela que o atirava por vezes contra a cama e a roupa que ela deixava ao acaso espalhada pelo quarto, á procura dos sabores dela, dos cheiros dela, da imaginação dela que o pregava ás costas da cama, enquanto ela nua lhe soprava palavras e se encavalitava firmemente com as mãos na madeira, encurralando-o, impondo-lhe os ritmos, arrancando-lhe as palavras que ele detestava dizer, temendo alguma desconcentração que a desiludisse, a fizesse sair do transe.
Viu ao longe o Taunus, tirou as chaves e caminhou segura para o carro, mala ao lado, telemóvel em posição de combate, 8.00h da manhã; uma hora depois estaria a receber a 1º chamada do escritório de Lisboa. Atravessou Luanda pelo largo do Kinaxixe, olhou ainda outra vez o tanque ferrugento no centro da praça, buzinou aos miudos da rua, mexeu o cabelo, olhou o espelho, não gostou, parou. Tirou a escova da mala, não estranhou o toque ao de leve no vidro, algum miúdo a pedir, arranjou o cabelo sem ligar e de repente viu-se rodeada de faces impenetráveis a olhar de todos os lados de todos os vidros da frente do carro. Estremeceu, lembrou-se dos avisos, o carro balouçava como se de um barco se tratasse, olhou a mala distinta da TM&A, abriu o vidro e gritou: fora daqui!. Os lábios vermelhos assustaram aqueles pobres diabos, movidos pela curiosidade, saltaram como esquilos e desapareceram a rir.
Com a raiva deixou o carro ir abaixo, deu volta à chave, e nesse momento sentiu um silêncio envolve-la, como se os passos de gente se evadissem num espaço irreal para ficar só face a face com o medo.