segunda-feira, maio 31, 2004

Raros são os dias (VIII)

Lisboa - Luanda



Marcelo, sabia agora, não o amava, não sentira a emoção de querer alguém, como se a voz dele não tocasse a imaginação, como se os dedos dele não tocassem os seus cabelos negros, como se o seu corpo não a fizesse arrepiar e estremecer e desejar sempre mais, como se fosse impossível separar-se de um ser a quem se deu a intimidade das lágrimas misturadas com a raiva do acaso imperfeito, como se fosse a única ponte entre o desespero e os dias de sol, passados numa esplanada do Castelo a rever papéis com Afonso quase, quase a chegar.
Arrepiou-a uma rajada que lhe apagou o cigarro, Marcelo que faria se soubesse, não merecia, dizia sempre a Afonso, não conseguia explicar a um o que não sabia como dizer a outro. Passava os dias em Lisboa com Afonso, insegura na segurança da cidade, e depois voltava para a insegurança de Luanda, segura no braço de Marcelo, na casa da Maianga.
Não conseguia subir o elevador, olhava a chuva e a porta, surpresa por tanto hesitar, ela, um vendaval no escritório, os gestos firmes de entrar no 12 º andar com barulho de roupa e mala, com sorrisos de batôn vermelho, com vestidos de cores fulgurantes, com a certeza de ninguém estar melhor com a vida, com as opiniões atiradas para o ar, com verdades impossíveis de escapar, com os olhares tímidos de quem gostava de contradizer mas não podia, a resistência do olhar casava com a voz e ditava em vez de recomendar, ficara-lhe aquele jeito de certezas disparadas do nada, como se estivesse em palco, uma mulher fatal num trio de jazz, com baterias resplandecentes, piano engraxado onde a cantora se penteava, se deitava num vestido e sapatos vermelhos, um baixo onde um negro sorridente com cap se encostava, e ela chorava com a voz, ou gritava : body an soul !
Menina, eu perco-me consigo, assim nem consigo conduzir direito, depois conta-me tudo. Era assim, quando chegava a Luanda, seria assim semanas depois, quando sobrevoava Lisboa na madrugada, e mesmo com os olhos cansados de dormir aos bocadinhos, entre olhares perdidos nas estrelas focados através da janela oval, quando os outros cobertos de mantas se apagavam, e ela sempre viva, pensava no prazer da chegada, na incerteza de qual era a sua terra, enquanto o ruido de bandejas metálicas começava, o cheiro a omelete de avião, as meias dos outros em lugares de sapatos, como gatos malcheirosos que atravessavam os corredores, cambaleantes e de olhares papudos e cabelos esticados e hálito repulsivo.
Á procura dos anjos no meio das estrelas em cada viagem, entre os papéis e as leituras recomendadas, entre as revistas da "especialidade" e os jornais de economia, os que partiam a realidade aos bocadinhos, entre ler o romance de Lidia Jorge e a cronica de viagens de Chatwin, pick yourself up, dust yourself off, Krall no walkman, a lembrar-lhe a inspiração, and start all over again.
Levantava-se e media o avião, imaginava a sua forma de canudo arredondado a velocidades de um mundo que não entendia, e nada levava a sensação de voltar à outra vida, entre os continentes, entre os sabores, um previlégio que ninguém lhe tirava, a sua existência apaixonada, entre os dramas do prazer ausente e a felicidade de olhar a sua vida de longe, de muito longe, de se deixar envolver pela bruma da madrugada de Lisboa, num taxi, ver Lisboa antes da massa de gases tóxicos disfarçados de pessoas que a invadia todas as manhãs, antes de as vidas pararem em carros e autocarros, antes mesmo de um calor ténue e a luz branca absorverem as ideias de Lisboa. The night they called it a day.
Da Portela ao Campo Pequeno, do 4 de Fevereiro à Maianga, as viagens pequenas que eram o epilogo de um conto sempre triste e emocionante ao mesmo tempo, de ausência permanente transformada, em 7 horas de estrelas desejadas que ficavam para trás, como já tinham sido há muitos muitos milénios.

domingo, maio 30, 2004

There's a ribbon in the sky

Lisboa- Terreiro do Paço ---> Algés ----> Lisboa- R. do Crucifixo

Este passeio é feito a correr, entre nuvens de calor, entre 900 pessoas e entre muitas bátegas de calor húmido, com o sol a perguntar porquê. Não sei porquê este desafio que se repete em muitas outras corridas loucas em que a camisola se inunda com a água misturada.

percorro a 24 de julho e vejo os que saiem da K com cigarro na mão e garrafa de água na outra. Alguma coisa nos une: a união da noite com o dia, a necessidade de competir com alguem que somos nós e mais ninguem. Na passada regular acabo por encontrar a deusa da corrida, falamos e juramos acabar a corrida, custe o que custar.

a imaginação passa a controlar os passos, agora que nos aproximamos da ponte, depois Belém, depois a marca de U turn, os outros que estavam para diante deixam de contar e olho com mal disfarçada satisfação os que eram eu alguns minutos atrás. Depois de novo belém, a ponte, as docas, e tudo o que se repete há muitos anos. Onde está a medalha ? é preciso continuar... deusa ali mesmo ao meu lado. Respira-se calor e humidade, já só faltam 3 km para os 15, é preciso encontrar pensamentos que ajudem, passam electricos, carros, vou cantar qq coisa para dentro (somewhere some day, we'll be together, como cantei a olhar para o Cristo-rei há poucos anos, no meio de uma multidão eufórica, preparada para correr 21 km)

Não descobri porque faço este sacrifício físico, mas não é tão diferente de acordar todos os dias e ser levado a fazer qq gesto necessário.

Olho para cima, sei que venci de novo. Contra mundum

sexta-feira, maio 28, 2004

Raros são os dias (VII)

Lisboa


Durou dois meses e tal esta expectativa de alma, uma viagem a Luanda não esmoreceu, nem quando Marcelo a olhou como sempre fazia com o sorriso mais bonito do mundo, como se soubesse pôr a alma dela outra vez no lugar certo. Nem mesmo quando pensou que a casa da Maianga era o melhor lugar para respirar, para tirar da pilha dos livros que têm de ser lidos, um, aquele que fala deles, aquele que faz tudo lembrar quando parece tudo esquecido, aquele lugar incompreensível em que a alma se ri para as palavras que dizem para dentro que não há caminhos por ali. Olhou para Marcelo no aeroporto, para o sorriso, sentiu-se bem, aconchegou-se, pensou que aquele era o homem dela e até era capaz de lhe dizer tudo, de lhe dizer que a fantasia dela ia aos poucos destruindo o que eles eram, ia comendo devagarinho, como faz o tempo ao corpo das pessoas, mas que não tinha importância, era uma alma ausente aquela para onde ela olhava, ele era o corpo. Dez vezes olhou Marcelo, dez vezes saíram palavras ocas onde deveriam sair as outras, agarradas desesperadamente à alma, não conseguia libertá-las, e continuava pela noite, acordada, suada, desiludida pela bactéria que comia aquela vida, a minha vida.
Muitas horas e dias de conversa depois, ele estava à porta do Hotel onde ela costumava ficar, depois de uma hora a mudar vestidos e blusas, arrependida mil vezes do perfume, muito doce, ele não ia gostar, devia ter posto outro mais neutro, como se fosse Inverno rigoroso, como se caísse neve naquele primeiro encontro, como se fosse um encontro no extremo de um pontão com um farol imponente, mas não, era Novembro, fazia sol, um mês improvável para romances inventados.
Era tarde, ele chegaria daí a nada, não era preciso voltar atrás, saído não do nevoeiro de Novembro, mas caminhando pela avenida abaixo, com um casaco azul pela mão, trazendo a bactéria que ela temia. Sabia que a fotografia era para o tempo amarelecer, mas quem ousa pensar isso no momento em que tem a certeza de que vai ser capaz de coisas impossíveis, para quem tem a certeza que a imaginação dos outros, no cinema, nas telas, é aventura de almas livres.
Agora, ela estava ali, á porta de um prédio recente, nas Laranjeiras, pronta a alugá-lo, para eles. Pelos meses rápidos ficaram as viagens a Luanda, o Fonseca à espera na saída do controlo, Marcelo cá fora sempre sorridente, o mulato mais bonito de Luanda, como ela chamara quando o beijou pela primeira vez, e conseguiu fechar os olhos que não queria tirar do verde água dos dele; as águas da baía de Luanda protegeram muitas vezes a ansiedade dos encontros, o piano de Jarrett também, last night when we were young, o amor ao jazz, as diferenças do jazz. Os fins de tarde de Luanda vieram até ali, passou a mão de novo pelo cabelo, sentiu a tristeza de quem não sabe como transformar os sentidos em actos quotidianos, a culpa, sempre a culpa dos actos que falham os sentimentos. Eu gosto mas não vou, eu quero mas não posso, eu faria mas hoje não, eu farei se amanhã, eu quero que sejas assim, eu quero ter-te hoje, mas não estás, eu repito este gesto contigo, mas agora não podes.



Tristar - para lá



Quando estava farto de estar sentado, caminhava até ao sorriso antipático das semi-tias da TAP e encontrava na fila da frente este postal. Neste avião comecei as viagens entre continentes, e aqui começa a história das viagens de África.

Começavam entre filas de gente, horas de espera, embrulhos em montes infindáveis. Depois, dada a angústia de partir "para lá", sentava-me nas cadeiras amarelas e pegava no livro de viagem. Não lia, mas folheava e antecipava as horas, enquanto olhava para os parceiros de viagem; tentava ver ansiedade, alegria, tristezas, e invejava os sorrisos que pareciam muitos.
Eu tinha pensamentos terríveis, das toneladas a levantar voo, tomava um dormicun com 2 whiskies, e esperava mais umas horas. Punha o walkman a jeito, punha Bach para acompanhar a descolagem, e aí tinha o primeiro momento de aventura: os 3 minutos acompanhados pelos Concertos Brandeburgueses e pelo tremor da bagageiras e dos embrulhos a cair.

passava o jantar da meia-noite, pegava no livro e á 3ª página começavam as pessoas do lado a confundir-se com o sono. Sempre achei tranquilo o momento da descolagem. Calados, os passageiros pareciam poucos no avião gigantesco, o wide body, nome simpatico para aquele prédio ambulante.

No ar dormia aos soluços enquanto Bach e o comprimido faziam o resto. As trovoadas passavam a estar entre a minha cara multidimensional reflectida nas camadas de espelho-plástico e o solo.

terça-feira, maio 25, 2004

Raros são os dias (VI)

Lisboa




16h. Olhou de novo a lista. Tinha a certeza que estava tudo, mas parecia que algo devia estar e não estava. Não, eram coisas da superstição, dia de chuva, dia de cabelos difíceis, dia de correr tudo mal, dia de ver o espelho de soslaio, para não ficar mais acesa a luta com a imagem. Levantou.se para sair nas laranjeiras, com o metro quase vazio, seria mesmo ali? O anúncio dizia Metro: Laranjeiras, aluga-se mobilado, T2, vista deslumbrante sobre Monsanto. Seguiu as indicações dadas pela imobiliária e deu com a porta, trinco avariado, começamos mal, mas seguiu para o elevador, 8º andar. De repente faltou-lhe a coragem para tocar no botão, não vais recomeçar, Laura, pensou enquanto recuava para a porta da rua de novo. Acendeu um cigarro, o maço a acabar comprado de manhã na pastelaria perto do escritório. Sabia que nada seria igual a partir do momento em que decidisse a "loucura", como ele dissera, ou fazemos uma loucura ou perdemos a ilusão, não seguramos o passado e o futuro não vem. Pensava no sofá onde se sentaria a ler e a olhar para ele, com disfarce de olhos, enquanto ajeitava o cabelo apanhado com os ganchos sexy que comprara na Casa Batalha, pernas cruzadas com uma camisola creme muito larga e uns calções justos até ao joelho, outra vida, e ele? Naquele jeito irónico que um sorriso bonito definia bem, ele olharia para si e diria que nunca mais a deixaria apanhar o avião para Luanda, que lhe rasgava a papelada toda e a convidava a engomar e a fazer bolos de arroz para festas. Sonhara com aquilo, mas os homens são seres inquietos, que arranjam sempre forma de desdizer as grandes verdades apregoadas durante tanto tempo, dissera-lhe a Fernanda, a amiga fiel ao cinema, ao vinho tinto e ao Centro Cultural de Belém. E a pouco mais, gabava-se, escondendo a angústia de quem não sente nada por nada, nem por ninguém, nem por um gato, "olha Laura, não te esqueças que os homens mais velhos querem as mulheres novas para poderem fazer uma grande inveja aos amigos, enquanto vão destruindo lentamente a nossa vida, primeiro com amuos sorridentes, depois com amuos seguidos de ausências prolongadas, mais tarde com desdém, sempre com ciúmes que nós não percebemos, até ao dia em que a insistência quase nos obriga a enganá-los. Lembras-te daquele filme com a Cher e o Nicolas Cage, uma comédia de italianos nova-iorquinos, às tantas um personagem pergunta porque andam os homens atrás das mulheres mais novas: porque têm medo de morrer, e assim criam a ilusão de voltar ao princípio. Olha querida, não te deixes levar por esse prof bem vestido com empresa posta à conta da Universidade".
Laura acabou o cigarro e já lhe apetecia outro, enquanto tentava perceber a "vista deslumbrante" que a chuva densa não inspirava. Conhecera Afonso no ano anterior, vira-o a falar numa conferência na Universidade Nova, com gestos largos, a agarrar a sala toda, a voz segura, o sorriso cativante, a irreverência de quem não cresceu nem será um "senhor" nunca. Tinha levado um vestido verde, um pouco ousado, da Mango, pintara-se, pusera os óculos de executiva, e dispusera-se a ir ouvir as últimas teorias sobre as empresas de auditoria e a questão deontológica da co-existência daquela actividade com a consultoria. Afonso dissertava alegremente sobre um tema um tanto disparatado, mas na moda, com um título sugestivo: Os consultores são auditáveis na Net?. Enquanto ele falava, a imaginação começou a trabalhar e decidiu mandar-lhe um mail que ele pespegara no primeiro slide da apresentação. Depois a vaidade dele fez o resto, mail para cá, mail para lá, piadas, a ironia, as comparações, as insinuações, o convite.
O toque do telefone, das mensagens com citações de Neruda, de raiva das respostas que não vêm, de angústia pelo texto telegrafado, de letras engarrafadas nos circuitos, que depois saiam em catadupa a pôr os coração aos pulos. Da correria para o computador da ansiedade da escrita do correio, hoje não escreveu, porquê, estará doente, esqueceu-me, trocou-me, fez birra não gostou de alguma coisa... Fascinava-se há medida que mais tempo passava, alimentava-se sozinha daquela ideia dele, da imagem dele, das coisas que ele dizia que parecia mais ninguem ser capaz de dizer, e mais, deixava-se atrofiar pelas palavras simples, obscenas e amarelecidas de tanto ditas por tantos sempre, amor, querido, meu amor, beijos ternos, mas com ele parecia que era preciso inventar tudo outra vez, voltar atrás, amor não era amor, era amor com ele, beijos não eram beijos eram os beijos que ela imaginava com ele, querido, desejava, imaginava-o numa sala de decoração minimalista a ouvir jazz, Jarrett, Evans, com livros espalhados no chão, cabelo esbranquiçado, a mão apoiada no braço de um sofá vermelho. Vira-o uma vez e imaginava loucas cenas de sexo em hoteis pelo mundo inteiro, andar encostada ao ombro dele em ruas de Teerão, correr perigos no Suez, andar por onde andam os sem esperança, olhar os olhos dele em Tânger, procurar Paul Bowles, viajar em comboios cheios de suor, em avenidas de Bucareste, olhar gaivotas em Istambul, ir almoçar a Porto Brandão.

Since that moment of bliss

Nesse momento todos foram calmamente saindo da varanda, com um sorriso, como se fossem fantasmas que sempre estiveram habituados a flutuar por entre aqueles para quem as formas das coisas vão sendo diluidas em fluidos estranhos e sem corpo.

What a difference a day makes. And the difference is you




(Para a P., para sempre)

domingo, maio 23, 2004

The young martyr - Rachel Corrie


You who sleep for ever
In your cold shroud
Shall the disgrace fall on
Your holy misfortune

Which sentences for its crime
Your suicided spirit
And puts on its face
An accusing appearance



Paul Delaroche - La jeune martyre


(Rachel Corrie morreu esmagada por um bulldozer do Exercito Israelita, em Rafah, Faixa de Gaza, 16 de Março)

Heads will roll


Lord, into thy hands I commend my spirit - said the nine day Queen



(Paul Delaroche, 1797-1856 - The execution of Lady Jane Grey]

sábado, maio 22, 2004

Congresso do PSD


Dos vários temas quentes abordados pelos congressistas, fica aqui um contributo para um dos quentes e sem dúvida abordáveis, o discurso da tanga ou das tangas:






A extraordinária moda do triângulo da tanga vem sendo revelada em público, e é preciso andar o país muito distraido para não ver as consequências apocalípticas que terá o aumento do défice entre o tecido interior e o exterior.

A manuela ferreira leite não quis comentar, apenas afirmando que nunca se baixa para apanhar nada.

Mas eu digo-vos que cada vez mais as prateleiras das lojas estão a cair em desuso. Está tudo espalhado no chão.

Mas o PSD está atento.

Easy Jazz: young & vets



Com este MICHEL BUBLÉ passam-se horas agradáveis no trânsito de Lisboa;é como beber um champagne antes de um jantar. Porque canta muitas coisas à la Sinatra, como "the way you look tonight"

(se eu fosse capaz de cantar dedicava-a a L.)




Com JAMIE CULLUM o tom é mais jazzy-pop (seja lá o que isto fôr...)

ouvem-se, entre outras coisas agradáveis, clássicos como "blame it on my youth" e "what a difference a day made"




A primeira vet é TIERNEY SUTTON, uma verdadeira jazz singer, adorável disco, Dancing in the Dark (a foto acima é de outro que recomendo também, Something Cool) , tem por exemplo "last night when we were young" e é um tributo a Sinatra.




Desta vet (DIANA KRALL) já toda gente disse tudo. Excepto o sortudo do Costello que casou com ela e fez o melhor dos últimos discos dela: "the girl in the next room"


Raros são os dias (V)

Paris

19h. Lembrava-se disto enquanto olhava a Torre iluminada, e falava baixinho, achava um certo direito de falar para ela enquanto sofria de frio, por ela. Sempre com a gola levantada subiu as escadas e entrou num bar onde os empregados empertigados, lembrando que estamos em Paris, se atarefavam em mil coisas, menos olhar para três gatos pingados que beberricavam coisas desconhecidas para ele, talvez Campari, Pernod ? com água tonica. Pediu um merlot, ao copo, inibido por na sua terra o vinho ao copo ser sinónimo de tasca, e pareceu-lhe ver o mesmo personagem do café de há pouco, entre os três homens, sentados a três quartos a uma mesa. Até parecia o Augusto da boca de lábios grossos inacreditáveis, o garoupa! mas não podia ser, o Augusto devia estar aquela hora a treinar a sua fabulosa equipa de Andebol que conquistara o mundo: olivais e moscavide. Não voltou a olhar e pediu o terceiro merlot. Faltava ali o jazz, pensou quando o vinho começou a actuar, mas isso ficava para mais tarde. Olhou o relógio e pensou na oferta da Laura exactamente um ano antes, o bloco para escrever "notas queridas", algo que ela espicaçou escrevendo : pertence a Afonso e Laura. Escreveram os restaurantes a experimentar, os locais "obrigatórios" para ir depressa, os bares "lindos"de Lisboa, as frases escritas no meio do trabalho, adoro-te, pensas que escapas, ainda vão ouvir falar de nós, Cuba não cumpre a sua missão histórica sem nós, faço um cruzeiro contigo, mesmo enjoando, Brasil, caipirinhas miil, Praga missão impossível...
Sorriu ao pedir o quarto Merlot, meteu a mão ao bolso do sobretudo, para voltar ler o caderninho. Não estava ali onde jurava ter posto, procurou mais, nos bolsos todos, pensou, já foi bebida a dose suficiente para perder as coisas, se calhar não trouxe. Não encontrou o caderno. Acabou o merlot, pagou e saiu.

21h Caminhou até à ponte d'Alma, deixou-se ficar com a cabeça entusiasmada de ideias de contar historias a quem sobrevivera ao congresso, assolado por uma leve má consciencia de não ter lá posto os pés. Afinal eles é que deveriam contar-lhe as histórias de como um congresso sobre o empresariado africano era tão desfalecido de ideias e monótono. Mesmo os congressistas lusófonos, alinhados pelo tom pedante dos franceses, estavam pouco á vontade, ou não estariam de todo, como ele afinal. Achou-se capaz de ir ter com a troupe brasileira e deixar-se seguir na alegria deles.
Apanhou um taxi para o hotel e adormeceu antes de conseguir ler o recado deixado na recepção: Afonso, esperamos por si para jantar na Maison Asterix, mesmo ao lado do hotel. Assinava Marcelo Martins da Universidade de Luanda.




terça-feira, maio 18, 2004

Raros são os dias (IV)

Paris
18h Olhou durante muito tempo, viu partir muitos turistas, viu chegar muitos ainda, um circulo vicioso, uma pena que aquele ferro tinha de expiar, sempre invadido por gente, mas devolvendo altivo uma resposta nula aos porquês de todo o mundo querer Paris. A Noite acabou por apanhá-lo ali a tremer de frio, a estudar turistas, a engolir angustias sobre o tempo que não o deixaria ficar ali. Não subiu, como tinha pensado, achou pedante e ridículo ao mesmo tempo a ideia de não subir com medo que um avião viesse sabe-se lá donde rebentar com aquele ferro indiferente e com as tripas dos japoneses e dos outros, ele incluído. Mas foi desta forma vagamente snob que passou a ponte e foi até ao Trocadero, parecia-lhe agora mais equitativa aquela relação com a torre, estava mais acima, olhava-a de outro angulo, já iluminada e parecia-lhe que podia parecer falar sozinho, falando com a Torre. E ali encostado ao muro olhando a Torre desabafou com ela, em português, desafiando a sua vergonha imensa de passar por louco, ouvindo comentários que sabia não serem sobre si (mas, e se fossem?), a vergonha era essa. Como dançar numa discoteca. Nunca percebia bem porque havia quem dissesse: adoro dançar. Para ele, dançar significava apenas participar na festa dos outros para não parecer diferente dos outros, tinha vergonha de dançar, como se todos olhassem para ele e dissessem, dança mal, não dança?
Gostava de estar numa discoteca como quem está numa livraria: aí sentia que ninguém olhava para ninguém, quem dançava eram os livros e ele adorava mexer-lhes e cheirar as capas disfarçadamente, comprava muitos livros sem saber bem porquê, chamavam-no, riam-se como diabos (não queria pensar que era marketing bem feito, preferia pensar em amor á primeira apalpadela). As capas agora eram lindíssimas, com letras em relevo, cores nunca antes conjugadas, figuras estilizadas, nada daquele género letras a cavalo, poemas anunciados com letra miudinha e capas beijes, romances a prometer sexo. Lembrou-se de Harold Robbins, surripiado da mesa de cabeceira do pai, com alta roda, jet set e meninas a fazerem bicos a torto e a direito a velhos endinheirados e por milagre ainda musculados. Festas fantásticas com mulheres atraiçoando maridos no quarto de cima, de porta escancarada, com seguimento oscilando entre a teenager que surpreendia a mãe com o amigo do pai, ou com o pai idoso que surpreendia a filha com um amigo pouco menos idoso. Invariavelmente na piscina passava-se o negativo da foto com o homem da casa enrolado entre as saias de folhos de uma conviva, que oscilava entre a amante do pai (sim, o que surpreendia a mulher ), e a mulher do amigo que andava a desfalcá-lo na sociedade em comum. Certo o assassinio de alguem na piscina, depois de todos terem partido (que confusão!).Também Norman Mailer coabitava com Robbins com o veneno todo e a descrição da vida de sempre, isto é, sempre é diferente (mais tarde outro livro de Mailer de milhar de páginas haveria de contar-lhe muito sobre a América),livros de que haveria de saltar paginas.


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quarta-feira, maio 12, 2004

Raros são os dias (III)


Paris

16h Com estas ideias não acabou a sanduíche, pagou, pegou no sobretudo azul e saiu, de novo com angustias desnecessárias, estava a estragar aquele tempo tão livre outra vez com a obsessiva história do filme! Raios!
Veio de novo para o frio, andou depressa no sentido da Torre, e passou o Sena na ponte Alexander, onde as estátuas de bronze douradas ainda reflectiam um pouco de sol que restava a Paris, sentiu-se outra vez melhor, apeteceu-lhe comprar bombons, mas não, seguiu decidido a passar pela Torre, olhá-la pela primeira vez depois de tudo o que acontecera com as outras Torres.

Parou, sentou-se num banco e olhou a figura imponente daquele ferro que se erguia desde há mais de um século, desafiante, intrusivo, indiferente aos japoneses, indiferente aos males do século, indiferente e pouco ralado com a princesa que viu morrer ali mesmo ao pé de si, indiferente aos barcos cheios de gente que olhava especada para si e para as margens do Sena, tudo á espera de captar uma coisa qualquer de Paris, um sinal dos românticos, um aceno de alguém subitamente aparecido e conhecido, um artista americano? Uma movie star de passagem por ali, um primo de Viana do Castelo?


segunda-feira, maio 10, 2004

Like my dress

o tecido do meu vestido é suave e ondula, o olhar vê o que parecia ter esquecido.

viu os meus cabelos longos e pareceu não ligar, como só ele sabe fazer.

a segunda vez que olhou pareceu-lhe que era um vestido antigo, como se ele o tivesse comprado, me tivesse oferecido e eu o tivesse guardado num guarda fato, e fosse agora tirá-lo para ele ver; só podia admitir vestir este vestido para o seu segundo olhar.

Quando olhei para ele soube que era um segundo olhar, e que nada poderia nunca afastar aquele dia em que o escolhi.

Guardei o vestido para ele. E tudo o que tenho.



domingo, maio 09, 2004

Raros são os dias (II)

Paris

15h. Arranjou maneira de sair airosamente do congresso (afinal, pensou, os congressos são para isso mesmo, para se sair airosamente, quando se fala, e igualmente quando não se fala, saindo dali). Puxou a gola do sobretudo azul para cima, como era hábito, parecia-lhe sempre melhor, um certo ar descontraído a juntar á roupa de boas marcas que não dispensava. Achava-se sempre melhor quando viajava, os espelhos pareciam-lhe mais generosos quando o reflectiam nos hotéis, e achava-se mais inspirado para escolher roupa e combinar camisas com calças, casacos. Comprava coisas por comprar quando viajava, deixava-se levar pela indiferença das horas, divertia-se com o ar apressado dos outros, com o desespero dos taxis, com o ar de trabalho dos outros, e queria que nunca mais acabasse aquele tempo. Podia o ar estar pesado, as figuras de cera na rua, que era um tempo suspenso, o tempo de escolher de entre os seus estados de espirito aquele mais apropriado à roupa, ao sítio.
Sentou-se num café, em plenos Campos Elisios, ali donde via bem o Arco, sentou-se no alpendre coberto que caracterizava os cafés de Paris. Olhou a lista, hesitou entre beber já um tinto francês, arriscar uma sonolência precoce e despertar a imaginação. Mas não, encomendou uma sanduíche de camembert e um capuccino, tirou o sobretudo e pousou-o na cadeira do lado. Inspirou fundo e sorriu, outra vez aquela segurança de quem sabe que as horas que faltam para deixar Paris lhe pertencem, e nada do que o espera em Lisboa tem a menor importância, nada nem ninguém tem a menor importância. Nem a Laura. Não queria pensar mas já estava o mal feito: a Laura outra vez.
A sanduíche teve uma certa amargura na primeira dentada, olhou á esquerda e pareceu-lhe ver uma cara já aparecida no Congresso, mas depois olhou de novo para a rua e viu três jovens vestidas de vermelho, muito pintadas, como se fossem do Moulin Rouge, pensou. Disparate, por que raio haviam de ser do MR, ali mesmo á frente dele, também não poderia sabê-lo, mas divertiu-se a pensar como seria a tarde daquelas três, talvez a fazer horas para o espectáculo da noite, com champanhe incluído, jantar e traje sem jeans (lera na véspera no site sobre Paris). Fugiram-lhe as ideias para o cinema, e o amor impossível das grandes tragédias clássicas, desde as queirosianas figuras até Diana e o desastre da ponte d'Alma, romantismo, pontes de Paris, candeeiros elegantes, tinha de sair dali depressa antes que a noite tapasse Paris. Passou para Bjork sem perceber logo, mas claro: o filme que faltava ver, comprado para ver com a Laura e há muitos meses a caminhar entre a estante e a pasta entre a estante e o saco de viagem entre a estante e a mala do portátil. Mas nunca o vira, depois de decidir muitas vezes acabar com a superstição e vê-lo sozinho, mas nunca conseguira. Tudo se passava assim como um contrato tácito com a Bjork, com o filme e com a sua própria tragédia: sabia que ela morria no fim, mas adiava essa morte uma e outra vez; poupava a vida ao personagem e em troca esta consolava-o com a perspectiva de um regresso da Laura. Se o filme não fosse visto com ela então ela estaria consigo e perguntar-lhe-ia de novo: ainda resistes a ver o filme?! Quando o vemos juntos então? Na próxima vez, com calma.

sábado, maio 08, 2004

If you'd be my bodyguard




..then I wouldn't be your long lost pal, anymore

Raros são os dias (I)

Passeio do Tejo

Silencio. Pode ser um ser que se aproxima em silencio, ou o silencio desta casa, onde as notas de chuva consolam meias plantas sobreviventes de um Verão. Um Verão com silêncios, toalhas sobre a mesa na varanda, sumos de laranja. Silêncio, como o medo. Vindo de um profundo vazio estou com medo. Cada ano passa menos gente por aqui, cada ano passa alguém que não quer passar para outro ano. Cada ano a sensação de paz com um pouco de tristeza. Agora é o medo.
Começou ali naquele ponto onde as gaivotas poisam de manhã muito cedo, onde por mais devagar que vá elas não me apoiam no cumprimento. Uma coisa estava lá á minha espera na balaustrada que tremia agitada pelo vento. Apoiei-me ao ferro, senti vento quente onde devia ser frio, e instalou-se o medo. Fechei os olhos para não ter medo, como se estivesse de novo na cama, tivesse de novo 7 anos e muito medo, e puxasse os lençóis para a cabeça, todo tapado e com frio e medo dos monstros ou coisas. Aqui não consegui. O medo chegou-se ali e tomou posse.

Antes que pudesse pensar porque tinha medo, antes mesmo que pudesse ver porque tinha medo, mesmo em qualquer ponto do tempo que podiam ser segundos, viu uma espécie de peixe sorridente que abria umas goelas gigantescas e sentiu de novo o calor subir pelas costas e tapá-lo de medo.

segunda-feira, maio 03, 2004

Laura

domingo, maio 02, 2004

What a difference a day made



De repente, o resumo de tudo é uma chave
A chave de uma porta que não abre
para o interior desabitado
no solo que inexiste, mas a chave existe

(Drummond de Andrade - Corpo)

Mãe

Mãe que há muito partiu e que me visita em sonhos, perguntando por mim

como estás? diz ela, por vezes aparecendo numa imagem muito jovem, outras num ser difuso e angustiado.

Deus por não existir "em meu nada recolhe minhas queixas"
Pela dor, "sofro á tua espreita inexistente Deus.
Pois se viveras existiria eu também deveras"


(excertos entre aspas da Oração do Ateu, de Miguel Unamuno)



Só Deus
(Francisco Metrass 1825-1861)
1856 - Museu do Chiado

Estatisticamente espectacular


Dir-se-ia um acaso ou uma coincidência, acusar-se-ia o tempo, a curva do rio, o vento forte que fez parar debaixo de um toldo. Dir-se-ia uma vontade inconsciente, vinda de onde ? para quê ?, ou talvez se falasse de um destino ou mesmo de algo escrito para ser assim.

E a partir desse momento que não tem nome, porque se convencionou chamar estas coisas todas ao que não se sabe ou sequer suspeita de causa próxima ou remota, a partir desse momento mais tarde vivido como recordação, percebe-se que mudámos a nossa vida para outra qualquer.

Porque se desistiu, ou porque se insistiu e persistiu, porque se abandonou ou porque se resolveu ficar, esse momento, talvez não mais importante que outros momentos, mas por alguma razão designado por "naquele momento", esse momento, dizia, passa a viver como um monumento na nossa mente. Visita-se por vezes, passeia-se por lá, está lá e ficou lá.

Foi um toque desgovernado numa tecla, foi um encontro casual na bilheteira de um cinema, foi porque algo nos chamou a atenção e fomos por ali e não por outro lado.

Os momentos, esses momentos, são assim.

Uma obra de estatística espectacular, mas como fazer para não deixar que os "outros momentos" passem ao lado ?


Destiny RisingElen Fainberg